22 julho 2015

O fim é apenas um começo


O Inflexão teve uma vida breve, feita de muitos encontros e pensamentos. 383 publicações depois, chega ao seu fim. Os infletores continuarão a luta por outras vias, porque o fim é apenas o começo de alguma coisa, sempre melhor, esperemos.  

16 julho 2015

A guerra de gerações segundo Raquel Varela

A Raquel Varela tem contribuído, nos últimos anos, para a desconstrução de alguns mitos austeritários, batendo-se por causas importantes, como a Ciência. É, por isso, com interesse que leio a sua análise sobre as causas da baixa intensidade com que se desenvolve o confronto político em Portugal. Segundo a autora, como se pode ler no excerto acima, uma das causas para essa apatia reside na "geração de 20 ou 30 anos", que sofrendo os suplícios da emigração forçada não tem "uma palavra a dizer sobre a política em Portugal". A isso somar-se-ia a condição de desligamento do movimento sindical e partidário, revelando um "confrangedor analfabetismo político de toda uma geração".

Questiono-me, à partida, se a generalização de uma população sob o escopo do factor etário é, de facto, a melhor via para uma análise da mobilização política em Portugal. Há um debate sociológico que tratou precisamente desta questão. Pierre Bourdieu concedeu, em 1978, uma entrevista transformada em ensaio intitulado "A juventude é apenas uma palavra". Na sua leitura, Bourdieu avançava três teses: (i) a fronteira entre a juventude e a velhice é um objeto de disputa em todas as sociedades, uma vez que essas condições sempre foram acompanhadas de um status diferenciado e de uma desigualdade no acesso a determinados tipos de capital; (ii) não existe apenas "uma juventude", na generalização abusiva do termo. Em todos os domínios da existência - moradia, trabalho, relação familiar, práticas sociais, pertença de classe - as diferenças que atravessam os indivíduos da mesma faixa etária são imensas. "Dito de outra maneira, é por um formidável abuso de linguagem que se pode subsumir, no mesmo conceito, universos sociais que praticamente não possuem nada em comum."; (iii) numa sociedade de classes, as máquinas de reprodução social, como a escola e o trabalho, importam para a compreensão da selectividade social que condiciona indivíduos da mesma geração.

14 julho 2015

Os cinco delírios de Rui Ramos sobre a situação grega


Rui Ramos pensa que pode fazer no comentário político o mesmo que faz com a história de Portugal: manipular interpretações e factos para que a realidade histórica se possa assemelhar o mais possível às suas próprias conceções ideológicas e políticas. Mas mais difícil que manipular a interpretação de acontecimentos passados, é tentar manipular os factos de um conflito a que assistimos hoje, ao vivo e a cores.

No sempre habitual pasquim da direita, de seu nome Observador, o ilustre historiador ensaia a teoria de que depois do referendo grego têm de ser as elites da direita europeia a passar ao ataque. E segundo ele já começaram. Diz Ramos que o melhor símbolo da viragem política europeia dos últimos cinco meses são os 8 minutos em que o liberal Guy Verhofstadt interpela Tsipras no Parlamento Europeu. Já se sabia que um discurso tão degradante quanto mentiroso só podia excitar fanáticos, mas para Ramos esse discurso mostra que “a Europa tirou a gravata” e passou ao ataque para salvar a Grécia do “regime de demagogia golpista” em que Tsipras a colocou.
Como não está habituado a perder, Ramos entrou na fase do delírio político para tentar salvar a direita do banho de água fria que foi terem perdido o referendo, depois de usarem todas as formas de pressão política e financeira e uma escandalosa manipulação mediática nos órgãos de comunicação social privados.

Há lugar para um governo de esquerda dentro da União Europeia?



O encontro de solidariedade com a Grécia no Fórum Lisboa, à nossa modesta escala, foi já um sinal. A descrença na União Europeia como espaço democrático aumenta até dentro do campo conservador, com Pacheco Pereira e Freitas do Amaral a desnudar a unificação dos socialistas e dos populares em torno do projeto austeritário. A possibilidade de uma alternativa a esse centro político blindado, que surgiu de forma fulgurante com o Syriza, precisamente no elo mais fraco da zona euro, a Grécia, encontrou um muro no último domingo. De tudo que já sabemos, lemos e discutimos sobre a tragédia grega, há 5 sinais que nos devem ajudar a responder ao título deste artigo.


1. O poder da informação não derrota o poder como encenação.

Nunca soubemos tanto, em detalhe, protagonistas e substância, de uma crise da União Europeia. As divulgações de documentos oficiais por parte de Varoufakis foram apenas um dos elementos. Para além das medidas apresentadas publicamente por Atenas e Bruxelas, os meses de conflito obrigaram o governo alemão a uma exposição política extrema, diminuindo as possibilidade de encenação de um consenso minimamente democrático no seio das instituições. O golpe final deste domingo, ninguém o dúvida, ficará como mancha no ceptro de Merkel.

Mas o que este capítulo nos revela é que este nível de exposição e o acesso às informações não derrotam a capacidade do poder encenar a sua legitimidade. Tivemos de tudo. Das estratégias mais toscas, como quando Scheuble passeou Maria Luís Albuquerque pela Alemanha como exemplo do adestramento nacional, procurando dar vida à narrativa do "bom aluno" perante as pressões democráticas sofridas pelos partidos da austeridade em Espanha e na Irlanda. Às mais sofisticadas, com Junker a divulgar publicamente, "em nome da transparência", o documento de 28 de junho como uma "proposta fechada" à qual bastaria os gregos darem um sim, sabendo que as imposições da Alemanha para um acordo seriam imensamente mais gravosas.

Foi, no entanto, desde o salão dos horrores do Eurogrupo que esta encenação atingiu o refinamento de uma dança fatal. O primeiro passo foi dado pela subjugação democrática aos imperativos técnicos. Como agora expôs Varoufakis, a penúria dos meses de negociação encerravam, na verdade, a recusa surda em negociar o que quer que fosse. Os representantes dos chamados credores nunca aceitaram a implementação de uma medida em concreto, tomando essas propostas quase como uma declaração de guerra. A discussão de um tema era sempre, subitamente, atalhada por outro, e por outro. O que sempre esteve em causa foi a imposição da austeridade como protejo político hegemónico, totalitário, nunca a viabilidade económica de uma ou outra medida. O jogo foi sempre o da espera, o jogo em que o Syriza deveria morrer na casa de partida.

O segundo movimento foi executado com a prestimosa parceria dos partidos socialistas, que já em fevereiro tinha desempenhado o papel de "polícia bom", e agora terminaram sentados à mesa da humilhação, aprovando o mais grave pacote de austeridade já decidido pela União. Hollande e Renzi, defensores do SIM no referendo, por momento algum se bateram pela proposta votada pelo parlamento grego, já ela contrária à vontade popular. A encenação da atenuação das medidas perante a fúria germânica, promessa e engodo do governo francês, não chega a ser patética como a vanglória de Passos Coelho (reclamando a paternidade da medida mais colonial deste acordo), posto que é reveladora do regime dos tratados.

10 julho 2015

As fabulosas aventuras de Nuno Melo entre os 45 jardineiros gregos



Ainda não conhecemos a sentença final, dramaticamente negociada em Bruxelas, nem que consequências o acordo provocará em Atenas. Mas a vertiginosa crise grega expôs, como nunca, as contradições de uma União Europeia em decomposição democrática. Os sinais estão por toda a parte. 

Qualquer vitória à esquerda aumentará a chantagem sobre os povos. O NÃO coletivo grego fez desmoronar toda a estratégia seguida pelos tecnocratas europeus, assente na desqualificação sistemática do SYRIZA. Essa unanimidade violenta, sustentada pelos socialistas europeus e pela direita comandada por Merkel, produziu durante semanas uma narrativa poderosa da crise grega. Tivemos de tudo. Da versão benevolente, "eles não sabem o que estão a votar", até à última tentativa de recompor o campo austeritário grego, com o antigo primeiro-ministro Kostas Karamanlis os outros dirigentes a ressurgirem depois de anos em silêncio. E quantos não assimilaram, sem protesto, a etiqueta jornalística "o governo do Syriza" sem estranhar que nunca, por uma vez, se falasse no "governo da CDU"? Mas eis que no fim, a derrota.

O mandato popular do NÃO, que tornou Tsipras o líder europeu mais legitimado da actualidade, enfraqueceu consideravelmente a possibilidade do ataque particularizado. Desse saldo, resta o ataque psicológico sobre os gregos, um ataque ao país e ao seu povo como um todo. Dois dias depois do referendo, voltou a circular em força uma notícia do sensacionalista "El Mundo", que cita exemplos absurdos do clientelismo grego. Em Espanha, uma publicação com estes dados atingiu mais de 50 mil partilhas em menos de três dias.  Mas o mais significativo é esta notícia ter sido publicada em 2011, sem qualquer referência a factos ou fontes reconhecidas. Tornou-se, desde então, no fundo de emergência mediática da direita aflita. Em portugal, o primeiro a reproduzi-la foi Henrique Raposo, num tom copiado até à exaustão por vários comentadores de serviço. 

03 julho 2015

“Vamos fazer estágios até sermos velhinhos?”: os efeitos da austeridade na política de emprego.


[artigo publicado na Vírus, nº7]

Comecemos pela Sofia e os episódios recentes da sua vida. Aos 26 anos, depois de realizar um estágio curricular de nove meses num centro de acolhimento para menores, obrigatório para terminar a sua licenciatura em psicologia, enfrentou um ano de desemprego. Durante esse período trabalhou, quando teve oportunidade, como recepcionista num hostel, paga a falsos recibos verdes, e como animadora turística nos bares da baixa do Porto, recebendo em numerário, sem recibo ou qualquer tipo de proteção. Em vez de pipocas, como ditava a receita de Miguel Gonçalves, tentou vender refrescos e bolos numa feira local, alcançando por resultado um fracasso épico: os trocos amealhados não chegavam para as despesas. Concentrou-se, à falta de melhor, no último ano do seu mestrado, pago com a ajuda dos pais.

Perante nova oportunidade de emprego na sua área, aceitou um confuso convite para trabalhar numa clínica psiquiátrica. Ao fim de uma semana, disseram-lhe que seria, não uma profissional como as outras, mas uma estagiária, contratada através da medida de estágios emprego do IEFP, de qual já tinha ouvido falar, com uma remuneração de 691 euros, superior, apesar de tudo, ao que ganhava nas noites mal dormidas da movida portuense. Sofia ganharia o seu primeiro salário depois de quatro meses de trabalho gratuito. O período de aprovação do estágio por parte do IEFP esticou-se em adiamentos consecutivos, tempo durante o qual a Sofia continuou a cumprir as suas funções na clínica, que lhe pagou apenas as viagens diárias para o emprego.

01 julho 2015

OXI


"Incontáveis são os prodígios, mas nenhum mais prodigioso que o homem; o poder que transpõe o mar de espumas, batido pelo tempestuoso vento sul, ao abrir uma senda sob as ondas que ameaçam tragá-lo; e a fala, o pensamento ligeiro como o vento e os ânimos diversos para modelar um estado que ele ensinou a si mesmo; como escapar das flechas da geada, quando é difícil se abrigar sob o céu claro, e das flechas da chuva que se precipita; sim, ele tem meios para tudo"

Sóflacles, Antígona
  

30 junho 2015

O que a União Europeia tem que ver com isto?

Na semana de todas as decisões, cujos resultados definirão todo o debate à esquerda pelos próximos anos, vale a pena resgatar os dados do Eurobarómetro (2014). Perceber o país que somos é o primeiro passo para mobilizar a gente que temos:


1.A austeridade é marca e a imagem da UE. Na era dos burocratas, o discurso da "integração" perdeu o seu fulgor. 



2. A percepção da responsabilidade europeia pelos cortes e o empobrecimento é maioritária em todas as categorias, menos entre as "domésticas". Mas é mais significativa entre os trabalhadores manuais; os cidadãos entre os 25 e 39 anos; os que possuem escolarização intermédia; os habitantes das zonas rurais.





3. A maioria da população não confia nas instituições europeias.

26 junho 2015

Queimar o gato porque é tradição


[foto de Leo Grübler, FLickr]

Apelar à tradição como argumento forte, tantas vezes único, tem menos consistência do que a vetustez da etiqueta faz crer.
História não são tradições fabricadas para justificar o eticamente condenável.
A História tem até emergido da desconstrução de mitos e preconceitos, tem registado como pode o novo proceder do velho ou como o velho se esconde à espreita em tanta novidade.

A História compõe-se do novo, compõe-se do velho.

Não vejo no respeito pelas tradições - o respeitinho, respeitinho! retrógrado - nenhuma essência da portugalidade. Encontro desejo de veneração por um passado imaginado em muitas culturas contemporâneas. Poderá ser refúgio de um presente que escapa entre dedos, poderá ser vestígio de passado autoritário, entranhado tanto mais quanto menos estranhado. Era reconfortante pensar que é tão português. Seríamos únicos num acidente histórico. Só que não somos.
Nesta linha, a tradição é imaginada e construída contra a mudança social, é avançada como o pau que avisa e antecipa o sentir da paulada. Respeitinho, portanto.
O apelo à tradição tem História mal contada, inertemente recontada e tem de História muito pouco realmente. Crítica não rima com tradição. Reflexão rima, mas do outro lado do espelho faz caretas à imóvel caricatura da tradição.

Custa, sim custa. Viver rodeada de tanta tradição, tanto tabu que não se toca, tanta ladaínha que adormece e um presente de pés-de-barro que, visto com os óculos da tradição, é feito para não andar.
Bater na mulher, (foi?) tradição. Tourear, tradição. Elogiar as virtudes da pobreza e angariar pobres para a carteira de clientes da caridade, tradição. Constrangir na universidade, academicamente trajando saberes e diplomas que vão nus, tradição. Ai a corrupção e o dar uns jeitinhos, ai o trabalho mal pago e as gorjetas! Tradição.
Não é um passado, é um presente com podridão.

A tradição não é História nem popular: é popularucha, distorção; é caricatura, manipulação; é populista, invenção.

Em Portugal, recente ainda, a criminalização dos maus tratos a animais de companhia não é nenhuma tradição.
Fazer festa do espetáculo de um gato a arder, sem empatia ou comiseração é, alegadamente, tradição. Tradição, como tantas, feita de silêncios cúmplices: ninguém fez, ninguém viu, sem intervenção. Sempre se fez, qual é o problema, querem lá ver a modernice, repete a tradição.
Uma tradição com tanto de ignorância acomodada como de brutalidade indiferente. Precisa chamar-se tradição, como se defenderia uma aberração?
É preciso abrir as portas, arejar. Fechar o alçapão, iluminar. Denunciar publicamente, debater, conversar, protestar, tudo menos ignorar.

Infletir, infletir e sair da tradição. História precisa-se. É preciso fazer novas histórias.
O respeito pela dignidade, a revolta contra o sofrimento, a humanidade com que se deve olhar os animais são ferramentas no enterro da tradição.
Uma queixa foi registada. Alguém viu e publicamente denunciou, alguém reportou, alguém fez petição.
Não é o futuro que está à espera. É este presente, atolado, que não se quer tolerar mais.
A tradição foi como as cerejas, foi de começar. O Tempo das cerejas, vai de mudar. Estaremos já a andar?