Nas últimas semanas, a Irlanda tem-nos sido apresentada como
a prova empírica de que a receita austeritária da troika resulta. Ainda
há dois dias, Olli Rehn - vice-presidente da Comissão Europeia e o
comissário europeu responsável pelos assuntos económicos e monetários – dizia no
Parlamento Europeu que esta funciona “razoavelmente bem”: os “programas de
ajustamento” permitem resolver a crise - gerada pela “acumulação de
desequilíbrios macroeconómicos”. Exposta a cartilha dominante, por parte de
quem tem largas responsabilidades no que se tem passado nestes últimos anos,
vamos ao que interessa: o “programa de
ajustamento” irlandês foi bem-sucedido?
Antes de mais, convém lembrar que o que está em causa: a troika saiu oficialmente da Irlanda. Na
prática, porém, continua a ser “vigiada” pelos “credores
oficiais, nomeadamente por parte do FMI”. Indo ao ponto fulcral: a austeridade perdura, e perdurará por
bastante tempo. Diz-nos
o Expresso que “A
consolidação orçamental em 2014 e 2015 vai envolver um ajustamento de 3% do PIB
irlandês, ou seja mais 5,1 mil milhões de euros depois de uma consolidação de
13,2 mil milhões (8% do PIB) entre 2011 e 2013. Já para o próximo ano [2014], o
ajustamento na Irlanda terá de envolver 2,7 mil milhões (…). O objetivo é
registar em 2015 um défice público inferior a 3% do PIB.” O objetivo é
garantir a sustentabilidade da dívida pública, ou seja, que o país será capaz
de pagar a totalidade da dívida, evitando que os credores possam ser atingidos.
Estranho caso de sucesso, este, em que está tudo bem, mas em que a austeridade
continua, e continuará, a ser o prato do dia. Há, pois, que definir prioridades,
e a Irlanda tem-no feito, nunca pondo em causa os credores: em
2014, a Irlanda terá que pagar 8,4 mil milhões apenas em juros (em 2013
foram 8,1 mil milhões), um valor muito semelhante ao orçamento total da
educação (8,7
mil milhões).
Estando mostrado que a austeridade não terminou, e não
parece perto de terminar, importa saber quais
os efeitos que esta tem tido na sociedade e na economia irlandesas: como
tem evoluído o PIB? E o nível de desemprego? E a dívida pública? Quais as classes
que foram mais prejudicadas pela austeridade? Relativamente ao primeiro
ponto, o discurso austeritário favorece a tese de que o crescimento do PIB está
agora numa fase de crescimento galopante, depois de ter sido feito “o que era
preciso”. Ao contrário, o desemprego desce abruptamente, tal como a dívida
pública. Relativamente à questão sobre quem seriam as pessoas mais afetadas, o
discurso dominante favorece a tese de que os sacrifícios são justamente partilhados
por todos e todas.
Antes de ir procurar responder a estas questões, mais ou
menos pertinentes, importa contextualizar a situação em que a Irlanda recorreu
a programa de “ajuda” externa e em que consistiu exatamente este programa.
A economia irlandesa
O gráfico 1
mostra-nos a evolução do saldo orçamental irlandês, para o período 1999-2013.
Até 2008, apenas uma vez a Irlanda teve um défice nas contas do Estado: importa
relembrar que falamos aqui do saldo final, já depois de considerados os
pagamentos de juros e as amortizações da dívida contraída. Onde estão os largos
“desequilíbrios macroeconómicos” de que tanto se fala?
Certamente do lado da balança comercial, que regista as
exportações e importações de bens e serviços, para um dado país. No gráfico 2
podemos ver, para o mesmo período que o considerado no gráfico 1, que a balança
comercial irlandesa foi positiva para todo o período considerado.
Quando se referem aos desequilíbrios macroeconómicos, os
defensores da austeridade referem-se obviamente à presença de grandes défices
orçamentais e comerciais de um país, ao longo de um período considerável de
tempo. A Irlanda verifica o contrário: persistentes
saldos positivos de ambas as balanças (orçamental e comercial), sendo que
apenas no período do reinado da troika
é que a balança orçamental foi afetada.
De forma direta, podemos dizer que os grandes desequilíbrios
macroeconómicos que a Irlanda verifica pertencem ao plano do imaginário. São
uma mentira imposta para justificar o discurso de que as pessoas andaram a
viver acima das suas possibilidades, de que “os salários eram tão altos que toda a gente reconheceu
que tinha de haver uma correcção”
(quem é o diz é Suzanne Lynch, que fala no papel de correspondente do Irish
Times em
Bruxelas), justificando então um empobrecimento coletivo, mais que não seja
para permitir a purificação das almas.
Importa, no entanto, realçar
alguns fatores essenciais que podem advir do que foi aqui dito sobre os saldos
orçamental e comercial:
- Não se faz aqui a defesa de
saldos largamente positivos por períodos sucessivos de tempo. Os saldos
continuamente positivos implicam que outros países observam saldos
sucessivamente negativos, o que levá-los-á muito provavelmente a uma situação
de subalternização perante o exterior, sob a forma de submissão face aos credores ou sob outra
forma distinta de dominação, que historicamente revela ser não sufragada e
antidemocrática: a culpa destes desequilíbrios não pode ser vista como estando
apenas do lado do país “deficitário”. Por outro lado, não se diz que as trabalhadoras
e os trabalhadores dos países com saldos sucessivamente negativos viveram acima
das suas possibilidades: há mais destinatários da riqueza produzida, e
provavelmente para muitos deles a afirmação já é válida.
Voltando onde parámos, e
considerando agora uma outra balança, a corrente. Esta balança já comporta,
relativamente à balança comercial, duas balanças adicionais: a de rendimentos e
a de transferências. Considerando portanto a balança corrente (aqui medida em percentagem do PIB), como o gráfico 3
representa, a história já é diferente, tendo a Irlanda durante muitos anos
verificado saldos negativos. Estes
são explicados pela balança de
rendimentos, que agrega todas as transações correspondentes a rendimentos
decorrentes de ativos que residentes têm no exterior e que estrangeiros têm em
território nacional: a Irlanda foi alvo de grandes investimentos por parte do
exterior, daí que uma parte enorme do que produz não sirva para seu consumo
interno, pois é usada para pagar aos investidores internacionais. Isto leva-nos
a pensar até que ponto não é importante o controle dos investimentos
estrangeiros ao invés da sua promoção irrefletida.
A dívida privada (das
empresas e das famílias) atinge, na Irlanda, valores altos em comparação com os restantes países
europeus. A título de exemplo, enquanto a dívida privada portuguesa representava, em
2012, 254,6% do PIB, a irlandesa representava 331,8%. Não nos vamos alargar a discutir esta situação aqui
mas parece ser claro, tal como em Portugal, que este aumento de dívida privada
não foi criado por um extraordinário impulso consumista das pessoas, mas sim
pela criação de uma nova realidade comportamental por parte dos bancos e do Estado
principalmente nas últimas duas décadas, promovendo o endividamento das
empresas e famílias. No que às últimas diz respeito, o destaque vai para a
política de habitação: o Estado promove a aquisição de habitação própria,
enquanto os bancos competem para conseguir o maior número possível de
devedores. Diz-nos o The Economist que “na Irlanda, esta [privada] dívida também é afetada pela presença
de multinacionais; ainda assim, a dívida das famílias só por si representa mais
de 100% do PIB”. O artigo de Ana Cordeiro Santos para o livro Não acredite em tudo o que pensa ilustra
muito bem esta realidade para o caso português. Foi, aliás, este padrão
comportamental, com várias particularidades que não serão referidas aqui, que
originou a crise americana do subprime,
que marca o início da crise desta nova era de depressão económica prolongada. As políticas de austeridade não resolveram
o problema da elevada dívida privada: esta estava nos 313,3% em 2010 (o
acordo para a “ajuda” externa foi feita em novembro desse ano), passou para
330% em 2011, subindo ainda mais um pouco até aos já referidos 331,8% observados
em 2012 (ver dados aqui).
A narrativa de que a crise
financeira iniciada em 2008 pôs a nu as debilidades económicas da Irlanda em
termos de criação de riqueza é falsa. Pôs a nu as debilidades do seu sector financeiro, nas mãos de privados e não
regulado, incapaz de lidar com a crise
internacional e que, por outro lado, contribuiu
com a conivência estatal para o grande endividamento dos privados que
tornou o país mais suscetível a uma crise global. Ao mesmo tempo, a crise mostrou a grande dependência da
Irlanda face a proprietários externos, sendo que o retorno dado aos investidores externos implica um pagamento
ao exterior que deteriora as contas. Mas
não mostrou a sua incapacidade de gerar riqueza, pois essa incapacidade não
existe.
É esta mentira que permitiu
que o Estado impusesse medidas de austeridade muitíssimos lesivas às irlandesas
e aos irlandeses, de forma a ser capaz de salvar os bancos. Como exemplo, o
défice orçamental de 30,6% verificado em 2011 (representado no gráfico 1), um
valor incrivelmente elevado, não é explicado pelo pagamento de salários
exorbitantes e despesas sociais “supérfluas”, mas sim pelo dinheiro usado para
socorrer o sistema financeiro. E nada parece ter mudado no fundamental em
termos da visão sobre o papel e a posse dos bancos (nem na maneira como a dívida é
contraída, continuando as emissões a ser “asseguradas” por bancos
privados), pelo que estão criadas as
condições para uma crise equivalente daqui a alguns anos ou décadas.
muito bom
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