17 janeiro 2014

A Irlanda é a prova de que a austeridade resulta? (parte 2)

No post anterior foi contextualizada a situação em que a Irlanda recorreu ao programa de “ajuda” externa. Agora será analisado este programa, para a seguir responder à questão de fundo, ou seja, se a austeridade está a resultar na Irlanda.

O plano de “resgate”

Um estudo feito pela Attac irlandesa em conjunto com a Attac austríaca demonstra de forma clara que, enquanto o empréstimo total dado pelos credores institucionais na sequência do programa de “ajuda” externa foi de 67.500 milhões de euros, o valor gasto com os bancos foi de 89.500 milhões de euros. Todos os credores, mesmo os que não estavam cobertos por garantias do estado (caso dos hedge funds) foram reembolsados, ao passo que o fundo nacional de pensões, que visa garantir o futuro das reformas das irlandesas e dos irlandeses, foi “saqueado”.
Para levar a cabo esta política, vários impostos foram aumentados, dos quais o IVA é um bom exemplo. Das poucas coisas que foram poupadas, destaca-se o IRC, que permaneceu inalterado nos 12,5%. O argumento usado foi o de manter a competitividade fiscal que permitiu à Irlanda receber muito investimento vindo do exterior. Mais que sintomática é a passividade da União Europeia perante esta medida de dumping fiscal, que faz com que haja diversas multinacionais que pagam impostos mais baixos na Irlanda em vez de os pagarem nos sítios onde a produção é levada a cabo.

Mas a maior parte da austeridade foi feita do lado da despesa, como se regozija Miguel Frasquilho quando refere que “o ajustamento irlandês foi, é e será realizado em dois terços no lado da despesa”. Estes cortes na despesa do Estado (na ordem dos 20%, um valor enorme) foram efetuados em extensas áreas essenciais para a vida em sociedade.

Resumindo, o recurso à “ajuda” externa não é explicado por desequilíbrios macroeconómicos, mas pela falha do sistema financeiro. O “programa de ajustamento” serve, portanto, no imediato, para salvar os bancos. Por outro, numa perspetiva mais alargada no tempo, é usado como forma de impor uma mudança estrutural na economia, liberalizando a economia (de que a flexibilização do mercado laboral e a privatização de empresas públicas são bons exemplos) e retirando ao Estado uma parte da sua capacidade para levar a cabo políticas de cariz social (baixando por exemplo o valor do subsídio de desemprego).

Irlanda, um caso de sucesso?

É agora tempo de voltar às questões de partida e ver os efeitos das políticas que foram levadas a cabo.

1) O PIB, tal como refere Krugman, não cresce a um ritmo acelerado mas, pelo contrário, muito lentamente, como podemos ver no gráfico 4, da Comissão Europeia, acima de suspeitas de falta de honestidade “anti-austeritária”.


Gráfico 4

Legitimamente, Krugman diz que “é quase um ato heróico olhar para este gráfico e ver uma história de sucesso, uma justificação para as políticas de austeridade”: o PIB cresce ligeiramente, mas mantém-se bastante abaixo do que era em 2007 e as previsões não apontam para um bom crescimento nos próximos dois anos.

2) O desemprego, por seu lado, também não tem uma evolução tão “famosa” como seria de esperar, como o gráfico 5 ilustra. Está em queda, mas esta está longe de ser suficiente para compensar a subida exponencial que ocorreu a partir de 2008, ano em que começou nos 4,7%, crescendo aceleradamente até ao pico de fevereiro de 2012: 15,1%. Em dezembro de 2013 situava-se nos 12,4%, bem longe das taxas de desemprego que eram verificadas na Irlanda desde o início da zona Euro (1999), e que até 2008 pareciam quase imutáveis.


Gráfico 5

3) A dívida pública em percentagem do PIB, por seu lado, como ilustra o gráfico 6, continua a subir, sendo hoje quase 5 vezes maior do que em 2007.


Gráfico 6

4) A distribuição dos sacrifícios causados pela austeridade tem sido tudo menos igual, e este é o ponto mais importante de toda a análise aqui feita. A parte do produto total da economia que vai para as trabalhadoras e os trabalhadores foi reduzida abruptamente a partir de 2009, tal como se pode ver no gráfico 7, calculado a partir de dados da Ameco, com a metodologia proposta aqui (página 5). E as previsões apontam para que decresça ainda mais nos próximos anos. Há, pois, uma transferência de rendimentos do trabalho para o capital.


Gráfico 7

Paralelamente a esta evolução, 7 mil pessoas saem da Irlanda por mês (convém lembrar que a Irlanda tem menos de 5 milhões de habitantes), de acordo com Lynn Boylan, dirigente do Sinn Féin. O desemprego jovem, na ordem dos 30%, explicará certamente em grande parte esta saída massiva de pessoas, ao nível dos anos 80. A Irlanda é um país em que em vários períodos históricos a emigração tomou valores elevadíssimos, e hoje voltou a esse padrão. Os números do desemprego tornam-se artificialmente baixos face a esta realidade, isto é, não teriam provavelmente a evolução (ligeiramente positiva) que teriam se a saída do país não fosse uma realidade tão massiva.

Por outro lado, não temos dados para verificar com certezas quem são as camadas da sociedade mais afetadas pela redução das despesas sociais, mas sabemo-lo com um grau bastante elevado de certezas: são as camadas mais pobres da sociedade que, pela sua condição, estão mais dependentes de complementos estatais que ajudem a rematar os seus parcos rendimentos.


Portanto, a Irlanda não é um caso de sucesso

- O programa de “ajuda” externa irlandesa serviu por um lado para salvar os bancos e, associado às mentiras sobre a falta de capacidade produtiva irlandesa, a destruir as ajudas sociais e a liberalizar a economia;

- O programa não foi um sucesso: o PIB decresceu muito e demora a subir; o desemprego baixa, mas lentamente e está muito acima do nível inicial - e ainda assim esta evolução é ajudada pela emigração em massa que se verifica, caso contrário a taxa de desemprego seria muito maior; a dívida cresceu imenso;

- Os mais prejudicados pelo programa foram as classes trabalhadoras e as mais pobres. O capital está hoje numa posição estratégica superior àquela em que estava antes.

É essencial desvendar o embuste ideológico sobre a origem dos problemas do país, a forma como estes foram resolvidos e os resultados das soluções levadas a cabo, para que a discussão sobre o caso irlandês seja feita no domínio do real e não do ficcional.

5 comentários:

  1. E agora perguntamos nós: O que é que acontece? Nada...

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  2. Aliás, só não vê quem não quer... http://mastigador.blogspot.com.es/2013/03/sera-que-vai-ser-desta.html

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  3. "são as camadas mais pobres (...) os seus parcos rendimentos." Os seu parcos rendimentos? O salario minimo e' de quase 1500 euros, quem anda 'a procura de trabalho (para quen nunca trabalhou e nao fez descontos) recebe 185 euros *por semana* e cerca de 500 euros por mes para ajuda de renda... E' evidente que os mais pobres sofrem sempre mais pq qq corte e' sempre mais sentido, mas dai a dizer "parco rendimento"...

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  4. Publicamos seu artigo em nosso site. Abs!

    http://www.diarioliberdade.org/mundo/laboral-economia/45412-a-irlanda-%C3%A9-a-prova-de-que-a-austeridade-resulta-parte-ii.html

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  5. Parabéns Samuel Cardoso. Uma boa análise acompanhada de factos.

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