05 fevereiro 2014

Como a praxe se descreve a si mesma

O debate nacional sobre a praxe tem trazido a público uma questão fundamental: é possível haver praxe, tal como é descrita pelas próprios, sem abuso de poder e excessos? O chorrilho de vídeos, histórias, casos graves e até alguns casos de morte tem sido secundarizados por quem defende a praxe de hoje como processo de integração, dizendo que tal não é praxe.
Acredito que ninguém no seu perfeito no juízo, mesmo fazendo parte duma simulação, ou jogo, não pode desejar isso a não ser que tenha um grave distúrbio.
Mas isso não afasta algumas das questões principais. Por exemplo, quem tem responsabilidade sobre os actos da praxe? O argumento de que o aderir ou não aderir é um acto de liberdade, o que é questionável, que diz sobre a responsabilidade de quem "praxa", em todo o seu colectivo, quando acontece algo grave, tanto internamente no seu estabelecimento de ensino, como em acção judicial?

Porque o bom senso e "alguns valores do 25 de Abril" - a sua utilização para defender esse tipo de acção é aberrante, parecem não ter grande efeito neste debate, proponho o exercício de ver o que dizem 18 "Códigos de Praxe" (CdP) sobre três assuntos: o que é a praxe, quem são os caloiros e quais os seus direitos e deveres nesse âmbito, e o discurso sobre quem escolhe (livremente, também) não fazer parte desses rituais.

Sobre o significado de praxe, na maioria vemos uma cópia do que parece ser o CdP de Coimbra ou do Porto: "conjunto de usos e costumes tradicionalmente existentes entre os estudantes". É assim, grosso modo, para Medicina de Lisboa (FML), Politécnico do Cavado e Ave (IPCA), Universidade do Algarve (UAlg), ISCSP, Escola Superior de Enfermagem de Coimbra (ESEC), Academia do Porto e de Coimbra, Faculdade de Ciência e Tecnologia da Nova (FCT/UNL) ou a Escola Superior de Saúde Dr. Lopes Dias (ESSLD).
Esta expressão é utilizada com algumas adições noutras definições de praxe como no caso da Escola Superior Agrária de Castelo Branco (ESACB), Instituto Politécnico de Viana do Castelo (IPVC), Universidade da Madeira (UMad) ou Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Lisboa (ISCAL). Nestes casos podemos ler coisas como
Entende-se por PRAXE, o motor de integração dos bichos (leia-se novos alunos) nesta nova etapa das suas miseráveis e repugnantes vidas, a VIDA ACADÉMICA. [UMad]
 ou
É, sem sombra de dúvida, a Praxe o elemento que o recém-chegado aluno mais teme no momento da inserção no ensino superior. [ESACB]
ou ainda
...que as altas patentes, os superiores níveis hierárquicos do I.P.V.C., entendam por bem aplicar à indistinta e repelente massa de “coisas” ignorantes chamadas Ralé e, posteriormente chamadas Mancebo, com o nobre intuito de os emendarem e guiarem até à luz suprema do esclarecimento. [IPVC]

Fora a cópia das expressões com décadas, estas adições são claras na postura da praxe no que diz respeito à sua acção de integração. Bichos, miseráveis e repugnantes vidas, medo, repelente massa de "coisas" ignorantes, Ralé. O facto de uma data de nascimento contar com menos um ou dois anos que outra pessoa legitimar este tipo de postura, tem muito que se lhe diga.

Segunda questão, quem são os caloiros e quais os seus direitos e deveres nesse âmbito. O que dizem os Códigos? Porque de outra maneira este contributo seria demasiado longo para ler, fica um resumo do que há geralmente em comum e alguns destaques merecidos. As fontes usadas estão no fim do artigo.

Entre a descrição de vários tipos de protecções e as comuns declarações de submissão, aceitação, direito a, e respeito pela praxe, ou de respeito e obediência "pelos mais velhos", moderação das palavras, entre outras, encontramos com menos frequência o direito a ser tratado como ser humano que é (Mestrado de Engenharia Civil do Técnico [MEC/IST]). Vá, o direito a respirar também é salvaguardado (Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro [UTAD], UMad), o dever de saber a programação da Rádio Universitária do Minho [UM] (que por sinal é uma excelente rádio universitária, nada aí), cuidar da limpeza dos sapatos dos Veteranos [ISCAL], ser criado de mesa de alto nível [UTAD], e afins.

O resultado destes direitos/deveres e a sua "clareza" é visível, graças ao Youtube e aos vídeos feitos pelos próprios praxistas. Mas na verdade em nenhum lado se pode encontrar uma descrição do que estar na praxe implica, em concreto, em termos práticos.

Por outro lado, e esta é a terceira questão, estes CdP são claros na sua referência aos, comumente, anti-praxe, mas também conhecidos como objector de praxe [UM, IPCA, UBI, UTAD, IPVC], bicho-do-mata [MEC/IST, ISCAL], bicho da mata de monsanto [ISCSP]. Obviamente, deixaremos de lado os outros adjectivos que vão aparecendo com essas referências, como "bastardos" [UM] ou "mais reles corja existente à face da Terra" [UMad].

Mas prosseguindo, ficamos a saber que na grande maioria destes CdP, reclama-se a centralidade do processo da praxe  para ter a ousadia de querer impor que qualquer decisão de não pertencer à praxe tem como resultado um processo realmente hilariante. Vejamos. No MEC/IST o aluno tem de preencher uma declaração com informação pessoal, justificando o porquê de não querer participar. Esta declaração, segundo o CdP, terá de andar permanentemente com o aluno, porque senão poderá ser equiparado a "Bicho" e portanto sujeito à praxe. Na UM, o mesmo, mas desta vez é necessário que comunique por escrito, imagine-se lá, ao "Papa", acompanhado de uma fotografia que, no caso do "Conselho de Anciãos" aceitar o seu pedido (!), será publicada "nos Jornais Universitários que estiverem efectivos na ocasião" e num lugar visível da Associação Académica. Ambos os exemplos repetem-se com pequenas alterações no IPCA, UAlg, ISCSP, IPB, ESACB, UTAD (em que novamente "Apenas o Conselho de Veteranos ou o próprio Venerável Ancião pode atribuir o Estatuto de Objector à Praxe"), ESALD, UMad, entre outros. A descrição desta última é esclarecedora.
Anti-PRAXE é qualquer aluno que Zeus teve a infelicidade de colocar à face da terra. São almas perdidas do Ensino Superior, que não aceitam a PRAXE como um bem Divino e essencial para um conhecimento aprofundado do Ensino Superior. [UMad]
Entre Códigos de Praxe mais poéticos e outros mais sóbrios, dois comentários sobre o que a praxe escreve sobre si mesma.

O primeiro é que, independentemente destes Códigos serem ou não postos em prática, a verdade é que são a maneira como a praxe em várias faculdades e institutos se auto-definem.
Segundo. Sobre a suposta liberdade de aderir ou não à praxe, é preocupante que órgãos eleitos, tais como as direcções de faculdades e institutos e mesmo de associações de estudantes deixem o processo de integração num grupo legitimado apenas por si próprio, que mantém esse monopólio. Isso leva ao inevitável abuso de poder e de força, com exemplos sempre muito inconvenientes (como o seguinte, com direito a pancadinha na cabeça).



A questão central parece ser então que tipo de integração efectiva no Ensino Superior deve ser exigida pela sociedade. Se uma que, como diz o agora muito famoso Dux de Coimbra, João Luís Jesus, "é hierárquica, é machista, é sexista", ou outra em que um ou mais anos de diferença na data de matrícula é significado de maior responsabilidade de ajuda, num ambiente de cooperação e não de submissão. Porque a maneira como os novos alunos são integrados no Ensino Superior, diz muito sobre o seu estado. E uma carta branca a quem se deixou submeter para fazer o mesmo a quem vem a seguir, não parece ser, definitivamente, a melhor maneira, ou sequer grande lição.

MEC/IST: http://cpmec.no.sapo.pt/codigo_de_praxe.pdf
UM: http://dl.dropboxusercontent.com/u/24607667/codigo20102011.pdf
FML: http://www.scribd.com/doc/125881776/CODIGO-DE-PRAXE-FML-2012
IPCA: http://dl.dropboxusercontent.com/u/10463250/Praxe/Codigo%20de%20Praxe/Codigo%20de%20Praxe.pdf
UBI: http://www.neubi.pt/anexos/CodigodePraxeUBI.pdf
UAlg: http://dgaaualg.files.wordpress.com/2009/09/codigo_de_praxe_da_universidade_do_algarve.pdf
ISCSP: https://docs.google.com/file/d/0B_HQgENW2K4iZE81cmo1eGN0QWs/edit
IPB: http://nucleogestaobraganca.files.wordpress.com/2012/05/cc3b3digo-praxe.pdf
ESACB: http://aeesacb.ipcb.pt/documentos/Codprax2009.pdf
Academia do Porto: https://dl.dropboxusercontent.com/u/4477230/Praxe%20Porto/Codigo%20da%20Praxe%20do%20Porto.pdf
UTAD: http://www.aautad.pt/doc/codigo_de_praxe.pdf
UC: http://www.forumcoimbra.com/codigopraxe2007.pdf
IPVC: http://srv.esa.ipvc.pt/aeesapl/images/CODIGO%20DE%20PRAXE%20IPVC.pdf
FCT/UNL: https://sites.google.com/site/conselhodepraxefctunl/codigo
ESSLD: http://files.esald-associacao.webnode.pt/200000459-74d8375554/C%C3%B3digo%20de%20Praxe%20ESALD.pdf
ISCAL: http://aeiscal.pt/index.php/94-cita-codigo-iscalino-de-tradicao-academica
UMad: https://www.google.pt/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&cad=rja&ved=0CC0QFjAA&url=http%3A%2F%2Fmax.uma.pt%2F~a2020002%2Fdownloads%2Fcodigo.pdf&ei=N5nxUqTuE8qf7AbUsoCYBQ&usg=AFQjCNEzoIn-dMl_SNGs-tV-qcEGU3wO_g&sig2=e4uGhi4GaCuoTXZ3Z8Kevg
ESEC: https://www.google.pt/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&cad=rja&ved=0CC0QFjAA&url=http%3A%2F%2Fwww.esenfc.pt%2Fsite%2Findex.php%3Fprocess%3Ddownload%26id%3D18355%26code%3D87752367&ei=XpnxUp_TFOqe7AauqYHQBQ&usg=AFQjCNEVEPQ29ejOWAq-sstScBGITN-s3g&sig2=e3MlKEy6tht05-zy4MnTDw

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