01 fevereiro 2014

Lutas colectivas contra vidas hipotecadas: o caso da PAH



Escrito por duas fundadoras do PAH- Plataforma de Afectados por la Hipoteca, o livro “Vidas Hipotecadas, de la burbuja immobiliaria al derecho a la vivienda” aponta as causas e responsáveis pela crise imobiliária no Estado Espanhol e conta a origem, as lutas e iniciativas da PAH contra os despejos e pelo direito à habitação.

Desde 2007 foram executadas mais de 35.000 hipotecas que deixaram na rua milhares de famílias endividadas por uma casa que perderam, refere-se na introdução deste livro de 2012, agora traduzido em inglês. Lá como cá, ser despejado por não conseguir pagar a casa ao banco não extingue a dívida. O banco fica com a casa, o dinheiro pago pela casa e ainda reclama o que o mercado desvalorizou.

Mas mais do que números, estas autoras falam-nos das vidas por detrás dos despejos, do seu desespero mas também da luta pela sobrevivência e dignidade de quem não ficou resignado. De como uma problemática individual se transformou numa luta coletiva e de como, por essa via, se conseguiu travar despejos, ocupar casas vazias para pessoas sem casa, envergonhar governantes e provocar algumas mudanças legislativas. A mais recente ocorreu em Barcelona, com mais de 1 milhão de habitantes. Esta cidade junta-se a outros 20 municípios catalães na aprovação de uma moção impulsionada pela PAH para multar até 100.000 euros os proprietários de casas permanentemente vazias, a começar pelas que estão nas mãos de entidades financeiras e grandes empresas.

E donde vem tudo isto? As autoras chamam-lhe o festim imobiliário. Nas últimas décadas produziram-se mais casas no Estado Espanhol que na Alemanha, Itália e França juntas. Mas sobreprodução não significou maior acessibilidade, pelo contrário. Os preços da habitação não pararam de subir e tornaram-se dos mais caros da Europa. Facilidades ao crédito bancário, casas vazias a especular no mercado e políticas públicas incentivando o endividamento privado, o festim estava feito.

Ganharam as construtoras, os bancos, a administração pública. Perderam as pessoas com a ilusão de que eram proprietárias. Veio a crise e a ilusão esfumou-se. Com mais de 5 milhões de pessoas sem trabalho e 1,4 milhões de casas em que todos os membros estão no desemprego, e num país onde as despesas de habitação são o principal gasto das famílias, percebe-se o drama. Em Portugal a história é muito parecida. Ainda que os números sejam menores, a magnitude do drama é igualmente grande. Mas a sua visibilidade, essa é muito menor. Continua a ser essencialmente um drama individual, ainda não transbordou essas fronteiras.

O começo do festim começa durante a ditadura franquista. “Queremos um país de proprietários, não de proletários” seria dito pelo primeiro Ministro da Habitação em 1957. Pretendia-se evitar conflitos entre um Estado detentor de casas e os seus inquilinos, mas sobretudo era um mecanismo de controlo social de uma classe trabalhadora descontente, alinhando os seus interesses com os de uma elite conservadora. Mais tarde, o acesso generalizado ao crédito tornou-se num novo meio de governabilidade social. Trabalha-se para pagar dívidas e aceita-se qualquer trabalho porque há dívidas para pagar, seja precário ou mal remunerado. Entretanto a habitação passa de um bem de primeira necessidade a ser um bem de investimento. A função social desaparece. Às pessoas vende-se a ilusão de que comprar casa é sempre um investimento seguro. Depois veio a crise imobiliária e a bolha estoirou. Os preços desceram a pique. Quem tem dinheiro investe. Quem é afectado pela crise, perde tudo menos a dívida ao banco. O Estado protege os bancos, afinal é o mercado que dita as regras, ou em boa verdade são os grandes grupos económicos e as elites de sempre.

Da indignidade surge a PAH em 2009, Barcelona. Hoje há centenas em todo o Estado. Com muitas lutas e algumas vitórias pelo caminho.

A PAH nasceu do contacto diário com pessoas afectadas pela execução de hipotecas e despejos. Pessoas que, mais do que revoltadas, estão abatidas, desorientadas e em processos de auto-culpabilização. Desconstruir estes processos é um dos primeiros objectivos da PAH quando junta afectados e afectadas em reuniões presenciais. Mais que terapia de grupo, serve para voltar a ganhar dignidade e perceber que há uma dimensão colectiva e causas estruturais para um problema sentido como individual. Além disso, reforça o espirito de colectivo e da sua necessidade para lutar contra a injustiça.

A PAH não funciona como um gabinete de atendimento e aconselhamento. É um colectivo político que parte das vítimas e as mobiliza para uma luta mais ampla que os problemas individuais de cada um. É assim que cada caso é assessorado em colectivo, em assembleias. Deste modo perdem-se medos e partilham-se conhecimentos e ferramentas úteis. Mas também accionam-se mecanismos de pressão social sobre os bancos que são quem tem de aceitar renegociar a dívida, reequilibrando-se uma relação de forças muito desigual. Criar má publicidade tem os seus efeitos.

Em 2010 formou-se a campanha Stop Desahucíos que entretanto conseguiu parar 936 despejos que ameaçavam o direito à habitação. Parece pouco, mas é algo. Depois nasce o projecto Obra Social da PAH para ocupar casas vazias em mãos de entidades financeiras quando a administração não garante alojamento à família despejada e o banco recusa-se a alugar a casa hipotecada em regime social: já se contam 712 pessoas realojadas. Pelo caminho muitas pressões sobre os municípios e a administração, muitas moções municipais aprovadas e uma Iniciativa Legislativa Popular. No último capítulo é possível encontrar ferramentas legais, conselhos e recursos.

Ainda que Portugal não seja o Estado Espanhol, há muitas similitudes. Trazer os casos de despejo a público, tirar as pessoas do medo, vergonha ou auto-culpabilização, abrir mecanismos de organização e luta que travem despejos, alertem consciências e metam no centro da política o direito à habitação é importante. A PAH é só um exemplo e nasce do contexto social de Barcelona, mais acostumado à participação popular e aos formatos assembleários. Mas vale a pena olhar com olhos de ver.

Sem comentários:

Enviar um comentário