11 fevereiro 2014

Precariedade: a nova batalha de quem trabalha


Um conceito de combate

André Gorz lançara já o alerta, a produção ideológica acompanha sempre o passo rápido das transformações produtivas. No campo do poder, a conhecida missiva social-democrata construída em oposição à tese da emancipação pelo trabalho «não importa o trabalho que faças, desde que sejas pago no final», transmutou-se em justificativa austeritária «não importa quanto ganhas, desde que tenhas um emprego»1. Esta apresentação do trabalho como bem raro, alvo de disputa e contenda social, não se opera pela deslocação da sua centralidade na estruturação das relações sociais, pelo contrário, a mensagem reforça a relação salarial como fim único para a reprodução do indivíduo – quem perde o emprego, perde tudo. O desdobramento deste pensamento é conhecido, perante a destruição acelerada da economia e a calamidade do desemprego, os limites diluem-se, quem trabalha deve estar disposto a aceitar todas as mudanças, todos os vexames. Uma dimensão de subordinação que pode ser encontrada na própria etimologia da palavra “precário”: precarius, aquele que pede ou obtém em oração. A súplica do emprego como súmula grotesca da era da austeridade.

A engenharia contratual operada pela vaga neoliberal insere-se nessa disposição: flexibilizar os horários, promover a rotação intensiva do posto de trabalho, retirar ao salário tanto quanto possível. Persiste, porém, o perigo de encerrar na relação salarial todas as possibilidades de conceptualização da precariedade, o que foi bem discernido por Serge Paugam, que tratou de apontar para um processo de «dupla precarização», no seio do qual a desqualificação das tarefas levadas a cabo pelos trabalhadores e o depauperamento dos seus salários se soma a uma precarização social, que arreda os indivíduos dos direitos sociais instituídos no seio do Estado-providência e assim os remete para um plano subalterno das suas representações e capacidades de organização coletiva2.

 Tratar o fenómeno da precariedade é, pois, na largueza da sua acepção, assumi-lo a partir de uma configuração complexa, decorrente de formas e modelos heterogéneos de contratação e de dominação estatal, que abrigam um contingente de trabalhadores muito diverso quanto às suas qualificações, percursos de vida e representações sociais. Mas é mais do que isso. Dotar a análise social de um conceito de combate passa, primeiramente, por situá-lo na sua historicidade, condição indispensável para a afloração da sua dimensão crítica. Essa escolha permite-nos afirmar que o conceito de precariedade ou de processo de precarização laboral enquadra uma dinâmica de transformação das relações de produção estabelecida em oposição a uma tendência histórica bem situada no espaço – a mercadorização da força de trabalho estabelecida no espaço da Europa ocidental, resultando na erosão das relações contratuais instituídas. Esse é o nosso ponto de partida.


Acumulação flexível e a crise do trabalho.

Lançado em 1975, o quarto álbum dos Supertramp ilustrava ironicamente o seu tempo, o seu título Crisis? What Crisis? seria, quatro anos mais tarde, parafraseado pelo acossado Primeiro-ministro trabalhista, Jim Callaghan, numa Grã-Bretanha paralisada pelas greves do sector público. Uma fuga em frente que acabaria por embater com a eleição da Dama de Ferro. A voragem da década transformava a onda revolucionária – de Guevara ao nosso Abril – em política de contra-ataque e de destruição produtiva. A política dura do neoliberalismo entrava nos gabinetes do poder e o movimento operário contraia-se nos seus bastiões. Das últimas movimentações na Fiat de Turim (1974), passando pelos fulgurantes embates dos metalúrgicos no coração industrial do Brasil (1979-1982), à derrota do movimento grevista nas minas inglesas (1984-1985), um capítulo da organização operária encerrava-se num contexto de transformação global da produção.

As limitações impostas ao regime de acumulação pelo compromisso fordista, o choque petrolífero e a crise monetária aliaram-se na impulsão de uma «nova grande transformação» das relações laborais e dos sistemas produtivos3. A internacionalização e intensificação das trocas comerciais apoiadas no surgimento de novas áreas de produção (tecnologia e informação) e o desligamento da economia real face à espiral de financeirização foram acompanhadas pelo surgimento de novos pólos geográficos de produção e pela aceleração das decisões de investimento e distribuição. O abalo no alicerce fordista foi significativo, com o embate contra a rigidez contratual e a defesa da flexibilização dos processos a realizar-se sob a alçada de um novo regime que David Harvey nomeou, bem a propósito, de «acumulação flexível»4

As tendências deste novo cenário firmaram-se como duradouras. No contexto europeu, o recuo do sector industrial produziu as suas ondas de choque: a diminuição da classe operária tradicional correu a par com a expansão das relações de assalariamento no sector dos serviços e com o fenómeno de aumento do desemprego estrutural. Ricardo Antunes realça neste novo contexto: (i) a «heterogeneização da classe trabalhadora», alicerçada na sociedade de serviços, que emprega diferentes estratos de trabalhadores no que concerne aos níveis de qualificação e experiências profissionais, assim como nos fenómenos de «feminização» do trabalho e do afluxo de mão-de-obra imigrante; (ii) a «subproletarização do trabalho», a partir do aumento das formas de trabalho «precário, parcial, temporário, subcontratado, “terceirizado”, vinculado à economia informal»5, que acarreta a diminuição dos salários e a retirada de direitos sociais.

Face à complexidade destas transformações não tardaram a soar vereditos históricos ousados. Jeremy Rifkin anunciou O fim dos empregos e o próprio André Gorz (ibid) sintetizou toda uma nova linha de análise «Não há, nem haverá nunca suficiente trabalho». A bem conhecida tese da crise ou do fim do trabalho, que se enredou em frequentes querelas de ordem epistemológica, ganhou adeptos e forjou novos objetivos: a criação ou a interpretação de um espaço de realização do trabalho à margem do mercado como lógica suspensa, independente da expansão capitalista e alheio às suas contradições. «Fazer a revolução não é destruir o capitalismo, é recusar a criá-lo»6, uma tradução ainda atual desta razão estratégica. Ora, o que a crise total deste último quinquénio (2008-2013) parece revelar, e que justifica aqui esta breve referência, é que a urgência do emprego, da sua criação e da sua socialização, ressurge em força, confrontando os campos políticos em disputa. Ao contrário do afirmado pela crítica mais superficial, o sistema não fica incólume à destruição acelerada do «trabalho vivo»7, e nunca foi tão visível o fato de as vias de desmercadorização do trabalho diminuírem nas suas possibilidades políticas à medida que o desemprego aumenta e a política de austeridade se agudiza. A indagação que permanece, e que Gorz mais seriamente realçou, é perceber até que ponto a noção de «trabalho abstrato»8 – pilar da teoria do valor-trabalho – terá de se atualizar de forma a providenciar uma análise mais acurada das novas formas de exploração laboral, num tempo em que «o custo social do trabalho se afasta, cada vez mais, da medida mercantil de seu custo imediato»9. A hipótese do desaparecimento do trabalho não se confunde, portanto, com a busca de uma melhor análise da sua crise sob a forma mercantil e capitalista dos nossos tempos.


Portugal: entre o Estado e o trabalho.

«Ainda não é o fim nem o princípio do mundo. Calma, é apenas um pouco tarde». Os versos de Manuel António Pina preenchiam um cartaz colado nas ruas que levavam à manifestação contra a troika. Estas palavras, editadas em 1974, ressurgem na urgência da compreensão de um país. E o que é a modernidade destas quatro décadas de democracia senão um princípio e um atraso? Um princípio da transformação da estrutura social e da economia: com a urbanização e o aumento dos níveis médios escolaridade a correr a par com a expansão dos serviços públicos e do sector terciário; o aumento do consumo e da esperança de vida; o acréscimo dos rendimentos disponíveis pelos ordenados e salários. E uma reprodução do atraso: com a desertificação do interior e a desindustrialização programada; a iliteracia e o défice de formação; uma economia paralela extensa e a permanência da pequena agricultura de subsistência; um sector industrial marcado pela ausência de organização, pela forte dependência tecnológica e comercial, onde impera um comando hierárquico de tipo autoritário e carente de instrumentos de gestão modernos; uma alta burguesia concentracionária apoiada nos sectores bancários e financeiros, alimentada pelos processos de privatização e sectores de baixa produtividade da distribuição, imobiliário e construção civil.

Todo este conjunto de modificações e permanências estabeleceu-se sob a égide de um ciclo que se alimentou do seu centro político: o Estado. No campo das relações laborais, a instituição de um novo modelo de regulação assente no moderno direito do trabalho10 e no reforço do fator salário – instituição do salário mínimo, obrigatoriedade dos quatorzes meses de pagamento, remuneração das horas extraordinárias – não foi alheio à génese política do seu tempo. O abalo do poder de Estado estabelecido pela dirupção revolucionária (1974-1975) estabeleceu uma matriz política carregada de elementos anticapitalistas, favorecendo a contratação coletiva e a expansão dos direitos do trabalho. Uma dinâmica que fez recair sobre o poder executivo uma maior autonomia na condução das escolhas económicas em face de uma burguesia desorganizada e enfraquecida.

 É certo que Portugal ocupa uma posição semiperiférica num bloco histórico onde se observam condensações e projeções políticas de alcance regional, com a integração europeia a estabelecer uma forte dinâmica de arrastamento político desde então, com todas as consequências conhecidas. Mas é da acepção de um Estado dotado de autonomia e força capaz da tarefa do reagrupamento das elites e do estabelecimento das regras do jogo económico que deve partir também a análise das transformações laborais.


Precariedade: o atípico como norma.

Em Portugal os contratos a termo passaram, em pouco mais de uma década (1999-2012), de 13% para 17% do total do emprego por conta de outrem, as empresas de trabalho temporário foram da insignificância à cativação de 8% da população empregada (380 mil trabalhadores), o subemprego visível (part-time involuntário) aumentou 392% (256 mil trabalhadores), os falsos recibos verdes disseminaram-se e o desemprego ultrapassou todos os limites. O que era atípico transformou-se em norma. 2012 foi o ano em que o conjunto de trabalhadores precários e desempregados (2,721 mil) ultrapassou o número de trabalhadores com contrato sem termo. Perante esta enorme transformação quatro notas devem ser evidenciadas e submetidas a disputa das ideias.

1. A política ultrapassa a economia. A flexibilização contratual que foi estabelecida como agenda de todos os governos desde o cavaquismo estabeleceu-se na criação ou aclaração das formas de contratação ditas atípicas – trabalho temporário, contratos a termo, recibos verdes – sob a capa de um duplo argumento oficial, o que as aponta, em simultâneo, como um instrumento de gestão empresarial e como uma política de criação de emprego. Estas formas de contratação aumentaram, desde então, quer nas áreas mais tradicionais, quer mais modernas da economia – a reengenharia é contratual mais do que produtiva.

2. A impunidade é uma escolha. O recurso a estas formas de contratação estabeleceu-se, em grande parte, à margem da lei do trabalho, ao que corresponde uma quase residual ação fiscalizadora por parte do Estado. Uma lógica que se confirma na própria política de contratação do Estado, maior empregador de trabalho precário em Portugal.

3. Os salários são o alvo. Os dados disponíveis mostram que todas estas formas de contratação corresponderam a uma subtração no valor médio dos salários e a um aumento da desigualdade salarial em comparação com os restantes trabalhadores, mesmo nos escalões superiores – se tomarmos a categoria de «quadro superior», observamos que o ganho salarial médio de uma mulher com contrato a termo correspondia, em 2009, a apenas 55% do ganho salarial médio obtido por um homem sem contrato a termo11. No caso do trabalho temporário essa subtração é ainda mais flagrante, com apenas 26% dos trabalhadores a auferir um valor acima dos 600€ mensais12 e somente 3% acima dos 1000€.

4. A flexibilidade como fraude. O discurso apologista da flexibilização dos contratos como meio de adaptação às novas condições de produção embate na evidência destas novas formas serem usadas como forma de rotatividade dos trabalhadores no mesmo posto de trabalho. As áreas da distribuição, produção alimentar e transporte, por exemplo, ocupam já o ranking do recurso ao trabalho temporário, sem que a isso tenha correspondido uma alteração significativa dos seus meios de produção e comercialização. O verdadeiro objetivo é o da individualização da relação laboral, que isole e pressione o trabalhador a aceitar o inaceitável. O código do trabalho de Bagão Felix foi, desse ponto de vista, a principal arma política, que levou à queda abrupta dos contratos coletivos e a expulsão destes trabalhadores dos Instrumentos de Regulação Coletiva de Trabalho.

Hoje sabemos que o que era rápido acelerou-se. A troika quer atalhos curtos para a transformação destrutiva. Na pilhagem direta dos salários e das pensões, na pressão sobre o horário de trabalho e horas extraordinárias, na facilitação do despedimento, em tudo isto reside uma quimera antiga. O atípico como norma transforma o antigo em desprezível, os direitos conquistados em benefícios reprováveis. Em todo o discurso do empreendedorismo, da flexibilidade, do auto-emprego encontramos a busca pela anulação da história e o apagamento das raízes lançadas pela organização de quem trabalha. A criação de um contrato único, igualitário na ausência dos direitos e nivelador da miséria salarial, persiste ainda como projeto não muito distante no horizonte. Nesta nova batalha, reivindicar a dimensão rebelde, histórica e organizativa que o próprio conceito de precariedade transporta e lançar mão de novas criatividades combativas é condição de vida para o socialismo e para quem dele quer fazer a emancipação de quem trabalha.

1 GORZ, André (1997), Misères du present: richesse du possible, Paris: Galilee.

2 PAUGAM, Serge (2000), Le Salarié de la Précarité: Les Nouvelles Formes de L’intégration Professionelle, Paris: PUF.

3 MUNK, Ronaldo (2002), Globalization and Labour. The New Great Transformation, London: Zed Books.

4 HARVEY, David (1993), Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural, São Paulo: Loyola.

5 ANTUNES, Ricardo (1995), Adeus ao Trabalho: ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho, São Paulo: Cortez.

6 HOLLOWAY, John (2010), Crack Capitalism, London: Pluto Press.

7 Conceito usado pela análise marxista que busca separar o trabalho no tempo presente da produção (relação de assalariamento) do «trabalho morto», trabalho passado acumulado, incorporado à maquinaria e à técnica produtiva. Uma relação que Gorz limitou sob a noção de «composição orgánica do trabalho».

8 Por trabalho abstrato entende-se o processo pelo qual o produto do trabalho adquire condição de permutabilidade, estebelecida de forma desligada do seu conteúdo específico como valor de uso, permitindo a objetificação do trabalho social num valor de troca universal e que, na moderna economia capitalista, está dependente da relação de assalariamento, na qual o produto é alienado do seu produtor.

9 BENSAÏD, Daniel (1999), “Trabalho e Emancipação” in Cadernos Em Tempo, nº308, São Paulo.

10 Direito que dita que todo o conflito laboral radica numa relação jurídica em que intervêm duas partes social e economicamente desiguais, cuja igualdade real importa garantir.

11 GEP – Quadros de Pessoal (2009).

12 IEFP, Relatório de análise do Setor do Trabalho Temporário (2010).

*Originalmente publicado na Revista Vírus

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