11 fevereiro 2014

Trabalho de menino é pouco?

Na semana passada, a imprensa internacional fez eco da publicação do Relatório The State of the World’s Children 2014. Este relatório, publicado anualmente pela UNICEF, é um instrumento fundamental para compreender alguns dos mais importantes indicadores sobre a infância. A imprensa portuguesa, num caso como noutro, apresenta apenas os dados referentes aos “países lusófonos”. Sendo o trabalho infantil uma das dimensões mais significativas do Relatório, apesar de algumas assimetrias na recolha dos dados [1], a compreensão das várias dimensões apresentadas não dispensa uma análise mais ampla do ponto de vista geográfico, assim como o cruzamento dos dados com outros indicadores.

Esta é a primeira conclusão: é evidente a existência de zonas geográficas de concentração extrema do trabalho infantil. Neste caso, como em tantos outros, a histórica relação Norte/Sul teima em impor-se como referencial de uma divisão social e económica do mundo. Assim, verificamos que as maiores taxas de trabalho infantil se concentram sobretudo em três regiões do continente africano: África Subsariana (27%), África Oriental e do Sul (27%) e África Ocidental e Central (26%). Da mesma forma, não será estranho que dos 37 países que registam uma taxa de trabalho infantil superior a 20%, apenas sete não se situem no continente africano [2]. De resto, todos estes valores são significativamente superiores à média mundial (15%), sendo esta superada em mais de 300% pelo país com a maior taxa de trabalho infantil, a Somália (49%). Nenhum país do continente europeu apresenta um valor superior a 20%, estando Portugal situado no primeiro quartil (com uma taxa de 3%).


Mas será a variação da taxa de trabalho infantil explicada unicamente pela distribuição geográfica? O gráfico seguinte foi construído a partir dos dados sobre a taxa de trabalho infantil nas nove classificações geográficas sugeridos pelo relatório [3], cruzando-os com a distribuição do rendimento familiar pelos 20% mais ricos (dados do Banco Mundial) e com a taxa de integração da rede de ensino primário (dados do Instituto de Estatística da UNESCO):



A primeira ideia prende-se com a relação entre o trabalho infantil e a distribuição do rendimento familiar pelos 20% mais ricos. A aparente exceção à linearidade do gráfico é, antes de mais, a representação de uma clivagem geográfica – de facto, o continente africano apresenta uma menor acumulação da riqueza familiar do que outras regiões (nomeadamente a América Latina e Caraíbas). No entanto, se fizermos o exercício analítico de isolar o continente africano, verificamos que a taxa de trabalho infantil aumenta praticamente na mesma proporção do aumento da acumulação de rendimento pelos 20% mais ricos. Feita esta ressalva, verificamos que existe uma tendência para uma forte relação entre as duas variáveis: quanto maior é a clivagem social, maior é o recurso ao trabalho infantil. Nesta perspetiva, é interessante o relatório Trabajo infantil en la agricultura: una forma de reproducir la pobreza entre generaciones, publicado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) em Novembro do ano passado, que inverte a questão ao defender que é a combate ao trabalho infantil que potencia a irradicação da pobreza.

A segunda conclusão é a de que existe uma relação forte entre o aumento do trabalho infantil e a diminuição da percentagem de integração na rede de ensino primário. (Note-se que as duas exceções são as regiões da África Subsariana e da África Oriental e Sul de África – precisamente as duas regiões em que existe uma maior percentagem de trabalho infantil –, o que pode fazer crer que existe um aumento da inclusão no rede de ensino nas regiões em que o trabalho infantil é mais elevado. Contudo, será crível que esta subida se deva antes ao valor especialmente baixo assumido pela África Ocidental e Central, que impede a existência de uma relação absoluta entre as duas variáveis. Uma das hipóteses apontadas poderá ser, de acordo com o próprio Relatório, algum sucesso relativo dos “programas de emergência” da ONU). A integração no sistema escolar, sobretudo nos graus mais baixos de ensino, cumprirá assim a dupla função de capacitação social e atenuante do trabalho infantil.

Sobre a relação entre trabalho infantil e educação, Alfred Marshall (aqui citado por Ana Lúcia Kassouf) escrevera, em 1980: “There is no extravagance more prejudicial to the growth of national wealth than that wasteful negligence which allows genius that happens to be born of lowly parentage to expend itself in lowly work. No change would conduce so much to a rapid increase of material wealth as an improvement in our schools, and especially those of the middle grades, provided it be combined with an extensive system of scholarships, which will enable the clever son of a working man to rise gradually from school to school till he has the best theoretical and practical education which the age can give.” Passado mais de um século, as palavras de Marshall são simultaneamente a imagem do progresso e do atraso, num mundo a várias velocidades. 

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[1] Não são apresentados dados sobre o trabalho infantil para algumas das grandes potências mundiais – China, Estados Unidos da América, entre outros. Ao invés, o relatório apresenta informação detalhada sobre uma parte significativa dos países mais pobres. Esta discrepância reflete-se na escolha das sete classificações regionais propostas.

[2] Não se situam no continente africano os seguintes países: Bolívia (26%), Guatemala (26%), Haiti (24%), Nepal (34%), Peru (34%), Iémen (23%). Os países africanos com uma taxa de trabalho infantil superior a 20% são: Angola (24%), Benim (46%), Burquina Faso (39%), Burundi (26%), Camboja (36%), Camarões (42%), República Centro-Africana (29%), Chade (26%), Comores (27%), Congo (25%), Quénia (26%), Lesoto (23%), Libéria (21%), Madagáscar (28%), Malawi (26%), Mali (21%), Serra Leoa (26%), Todo (28%), Uganda (25%), RU Tanzânia (21%), Costa do Marfim (26%), Guiné Equatorial (28%), Etiópia (27%), Gana (34%), Guiné (40%), Guiné-Bissau (28%), Maçambique (22%), Níger (43%), Nigéria (25%), Ruanda (29%), Zâmbia (41%).

[3] As classificações geográficas são apresentadas pormenorizadamente na página 26 do Relatório. Não havendo possibilidade de comparação estatística, o Médio Oriente e Norte de África foram retiradas da análise.

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