09 março 2014

empreendedorismo, a coisa e o modo

O cuidado artigo da Ana Cristina Pereira no Público de hoje avança algumas conclusões de uma investigação ainda em andamento. O empreendedorismo como mecanismo de legitimação e fala mitológica deve ser desnudado em toda a largueza da sua concepção. Fica o convite à leitura, com a certeza de que esta casa voltará, em breve, a esta tema.

«O que une e separa a inglesa Virgin e a minhota Betweien»

Sir Richard Branson, fundador do grupo Virgin, já proclamou 2014 “O Ano do Empreendedor”. A palavra tornou-se omnipresente. Uma campanha contra o seu uso abusivo até foi lançada pela Betweien, uma empresa spinoff da Universidade do Minho. Durante todo o primeiro trimestre deste ano, é proibido proferir essa palavra dentro das suas instalações. Quem prevaricar paga um euro.
Primeiro, os sociólogos José Soeiro e Adriano Campos entenderam que o empreendedorismo se tornara num dos conceitos fulcrais nas políticas de promoção de emprego. Depois, puseram-se a analisar o seu uso na política, na economia, na educação, na formação. Deverão apresentar o trabalho, que aqui se adianta, no congresso nacional de sociologia, em Abril, em Évora.

A palavra está longe de ser neutra. Os dois doutorandos da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra contaram quantas vezes surgiu nos programas de partidos com lugar na Assembleia da República. No do PSD, 29 vezes, no do CDS, oito, no do PS cinco, nos da CDU e do BE zero. Já precariedade aparece 15 vezes no programa da CDU, 10 no do BE, uma nos do PS e PSD, zero no do CDS.

No programa do PSD, cita Campos, lê-se que o partido “interiorizou que o empreendedorismo é uma revolução silenciosa que será no século XXI mais importante que a revolução industrial foi no século XIX”. Já no Governo, criou uma secretaria de Estado do Empreendedorismo, entretanto transformada em Inovação, um conselho nacional, presidido pelo primeiro-ministro, uma série de medidas específicas.

Presente em documentos legais, o empreendedorismo atravessa o discurso de associações, fóruns empresariais, institutos públicos. Tornou-se, diz Soeiro, que é dirigente do BE, “um conceito central do imaginário económico e do quadro semiótico a partir do qual a sociedade se pensa a si própria”. “A nossa hipótese é que o sucesso se poderá compreender pelo modo como este conceito permite dar um sentido à ´grande transformação’ que está em curso, explicando a erosão da condição salarial, o processo de precarização do trabalho, as novas formas de gestão flexível ou o desmantelamento do Estado Social, precisamente através do ideal do indivíduo autónomo e criativo”, explica.

Segundo Campos e Soeiro, o discurso sobre empreendedorismo parte de um diagnóstico determinista: a passagem de uma era de emprego para uma era de trabalho. E aponta um caminho capaz de superar tamanho obstáculo: o “espírito empreendedor”, mistura de criatividade, iniciativa, flexibilidade, independência, tolerância à incerteza, capacidade de assumir riscos, sentido de liderança, que faria do empreendedor uma espécie de super-homem.

Concluíram isso depois de analisar manuais dos cursos do Instituto de Emprego e Formação Profissional e de assistir a algumas formações da responsabilidade da Associação de Jovens Empresários. Numa delas, numa feira, no Porto, encontraram um antigo vendedor de automóveis, com microfone de lapela, frente a uns 90 estudantes e desempregados, a maior parte do sexo feminino, a dizer: “Se calhar há muito desemprego porque andamos todos à procura de emprego!”

“O sucesso é uma questão de atitude”, apregoava o tal formador. “Se querem ter sucesso, têm de seguir a fórmula MET ao quadrado.” Que significava aquilo? As pessoas avançaram várias hipóteses, mas foram incapazes de acertar. No fim, ele desvendou a “fórmula do sucesso”: “Mexam Esse Traseiro ao quadrado!”

É como se, depois de terem estado naquela sala, com aquele homem, a receber aquela lição, o sucesso ou insucesso de cada uma daquelas pessoas dependesse de cada uma daquelas pessoas. Não interessaria tanto o contexto económico, a flutuação do mercado laboral, o sentido das políticas públicas, mas as suas predisposições individuais, as suas competências, o seu comportamento, diz Soeiro.

Parece-lhe haver uma socialização precoce desta narrativa. Multiplicam-se cursos para crianças e adultos. Os investigadores depararam-se até com um curso para bebés: a prometer desenvolver, com os pais, “comportamentos e atitudes chave” que ajudarão o respectivo filho a ser um empreendedor.

O ministro da Educação, Nuno Crato, anunciou que está a preparar modos de incluir no ensino básico e secundário temas como empreendedorismo, criatividade e inovação. Não falou em criar novas disciplinas, mas em aproveitar as que existem para discutir “temas de empreendedorismo e desenvolver a criatividade através de projectos próprios que ensinem a participar no futuro da vida económica".

Há pelo menos 338 unidades curriculares de empreendedorismo no ensino superior – boa parte deles nas universidades públicas. Já há até diversos mestrados a decorrer – com os nomes de “empreendedorismo”, “empreendedorismo económico”, “empreendedorismo social”.

No entender destes dois investigadores, esta “concepção individualista e comportamental na abordagem dos problemas sociais, como o desemprego e a pobreza, está a contaminar as políticas sociais”. O trabalho ganhou um estatuto de “única forma de respeitabilidade social”. Apesar de não haver emprego, toda a gente tem de trabalhar. “Um indivíduo que recebe um apoio social e não faz qualquer coisa – quanto mais não seja limpar uma mata – não é merecedor desse apoio social”, enfatiza Soeiro, numa alusão a medidas como a de “actividade socialmente útil”, um programa que convoca beneficiários de rendimento social de inserção para trabalhar sem cobrar até 15 horas por semana distribuídas por três dias para entidades públicas ou privadas sem fins lucrativos.

Subjacente ao discurso do empreendedorismo, torna, está “uma espécie de utopia liberal de uma sociedade de empresários”. Portugal, lembra, até “tem um número particularmente alto de trabalhadores independentes e de empresários em nome individual”. Todavia, em grande parte dos casos, tal situação não é mais do que uma forma de associar um vínculo precário a funções subordinadas.

Ter muita gente a trabalhar por conta própria nem sequer é um indicador de desenvolvimento. “É nos países mais pobres que há mais auto-emprego”, remata. É que “há menos planeamento, menos capacidade de investimento, menos concentração e massa crítica”. Eis alguns exemplos: no Gana, por exemplo, 67% da população activa, no Bangladesh 75%, na Noruega 7%, nos EUA 9%.

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