02 março 2014

Sementes de guerra


Em Março terá lugar uma decisão importante no Parlamento Europeu: permitir que os e as agricultoras possam utilizar, vender e trocar sementes ou, pelo contrário, privatizar as sementes e favorecer o negócio de grandes empresas. Uma escolha que afetará a vida de milhares de pequenos e pequenas produtoras, assim como a diversidade dos ecossistemas agrários e dos alimentos a que temos acesso. Em suma, uma escolha que determinará muito do futuro da alimentação e da produção de alimentos. 

A venda e troca de sementes tornou-se num dos negócios mais apetecíveis a nível mundial. Estima uma consultora que o mercado de sementes comerciais - convencionais e transgénicas - crescerá dos 35 mil milhões de dólares atuais para os 53,3 mil milhões dólares em 2018. Diz-nos o Grupo ETC que apenas 3 empresas controlam 53% do mercado mundial de sementes, enquanto 10 têm nas suas mãos mais de 3/4 deste mercado (76%)A Monsanto lidera com 27%.

A história inicia-se quando, a partir dos anos 70, empresas petroquímicas e farmacêuticas começam a comprar pequenas empresas familiares de sementes. Nos anos 80 surge então uma indústria prometedora que junta a venda de sementes com a venda de agroquímicos e fármacos e começa a interessar-se pela biotecnologia. Neste caminho aposta-se pelas sementes mais lucrativas e perde-se diversidade genética, assim como os regimes de propriedade intelectual ampliam-se às sementes, plantas e demais produtos e processos biológicos, premiando a uniformidade. Até que nos anos 90 desenvolvem-se as tecnologias de esterilização de sementes - Terminador - o que impede os e as agricultoras de reproduzir e plantar as suas próprias sementes. Em reconhecimento dos seus riscos, a ONU introduziu  em 2000 uma moratória à sua comercialização, mas o braço de ferro continua. No Brasil é possível que dentro em breve se volte a discutir a sua permissão, o que deu origem a esta petição.

Dentro deste imenso mercado estão os transgénicos. Segundo o lóbi transgénico, estes começaram a ser comercializados a partir de 1996 e desde então têm tido um crescimento assinalável. 2012 foi um ano recorde com 170,3 milhões de hectares cultivados a nível mundial, 100 vezes mais que em 1996. Dizem eles que 90% dos 17,3 milhões de agricultores que cultivaram transgénicos são pequenos produtores de escassos recursos, mesmo que a larga maioria deste tipo de produtores ainda não seja dependente dos circuitos comerciais para obter sementes (ver relatório do Grupo ETC). Brasil é o país em que mais tem crescido no cultivo de transgénicos, ficando atrás dos Estados Unidos a nível da produção. Espanha lidera em termos europeus, mas Portugal entra na lista dos 18 países que mais cultivam transgénicos (50 mil hectares ou mais). Para um país tão pequeno, os números são significativos. O que não nos fala o lóbi é do dinheiro envolvido. Para as sementes estima-se que o mercado quase que duplicará entre 2011 e 2018, de 15,6 mil milhões de dólares para 30,2 mil milhões de dólares. Valores que abrem os olhos. 

Mas o que está em causa no Parlamento Europeu? Desde meados de 2013 que circula uma proposta da Comissão Europeia para reforçar as normas de saúde e segurança no conjunto da cadeia agro-alimentar. Esta proposta tem sido alvo de fortes críticas por diversas organizações, incluindo a Via Campesina. Mas também pela Comissão de Agricultura e Desenvolvimento Rural do Parlamento Europeu que recentemente deu nota negativa a esta proposta, à semelhança da Comissão de Ambiente, Saúde Pública e Segurança Alimentar.  Os argumentos foram de que a nova normativa não cumpre os objetivos de simplificar as normas e fomentar a inovação, além de não abordar corretamente questões relativas aos transgénicos. Após estas apreciações negativas a proposta será examinada pelo Parlamento Europeu. Se o voto for contra, a Comissão Europeia terá de retirar a proposta e apresentar um novo texto. 

As sementes são a base da produção de alimentos e da biodiversidade, ou seja, do que é vital para o nosso corpo e cultura e para os ecossistemas em que vivemos. Garantir a sua diversidade genética é a melhor arma para assegurar a adaptação à variabilidade ambiental, acentuada pelas alterações climáticas. Assegurar o seu controlo público é a melhor arma para que a agricultura seja uma atividade digna que produza alimentos saudáveis para satisfazer as nossas necessidades e que não fique refém dos interesses do lucro e da acumulação de capital, logo desde a decisão de semear e plantar. Manter a capacidade de os e as agricultoras usarem, trocarem e venderem sementes é a melhor arma para evitar que o seu controlo caia nas mãos de um punhado de empresas, além de promover a diversidade genética, de ecossistemas e de alimentos. 

O trabalho que inúmeras pessoas e coletivos, incluindo muitos e muitas agricultoras, fazem de coletar, reproduzir e trocar sementes é extremamente importante para manter essa diversidade genética. Mas mais do que isso, o que fazem é recusar que o capital controle as sementes, a agricultura, a alimentação e o nosso futuro agro-alimentar. Um controle que afeta não só as nossas necessidades básicas mas também os nossos gostos e hábitos culturais. Cultivar com diversidade e diversificar hábitos é fomentar a diversidade cultural, além da biológica. E este é um trabalho que é feito em conjunto entre as pessoas que produzem e as pessoas que consomem, uma aliança de interesses que não passa pelos critérios de mercado. Nestas práticas há um ato político de resistência e de alternativa. Por si só são valiosas e mostram-nos que não há inevitáveis. Mas por si só não bastam. Mudar as regras do jogo onde se joga o poder é essencial. E agora essas regras jogam-se na normativa que está em discussão no Parlamento Europeu. É aí que essas regras devem favorecer as populações e não os interesses do negócio. 







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