30 maio 2014

As Benevolentes



É o nome de um livro escrito por Jonathan Littell.  Um livro tão maravilhoso quanto duro. Aliás, muito provavelmente, tão maravilhoso porque duro. É a incómoda descrição de como o regime nazi, nas suas diferentes fases, foi alimentado e suportado pelas escolhas quotidianas de pessoas comuns. 
Para além do retrato da guerra, a dureza d’ “As benevolentes” vem da forma como nos confronta com a essência afinal tão humana e social de fenómenos que, talvez por proteção, preferimos encarar como o produto de uma loucura excecional, desumana. Sem simetrias forjadas ou forçadas entre a Europa dos anos 40 e a de hoje, o peso da história que carregamos devia fazer-nos, pelo menos, estar atentos aos sinais dos tempos. 
Em França, no Reino Unido e na Dinamarca partidos populistas de extrema direita ganharam as eleições; na Áustria, Finlândia, Grécia, e Hungria foram os 2ºs ou 3ºs mais votados. Na Alemanha, na Holanda e na Itália elegeram eurodeputados. No total, a extrema direita é a terceira maior força política no Parlamento Europeu. 

Surpresa? Talvez pela dimensão do fenómeno, mas nada que não tivesse sido previsto, estudado e analisado nos últimos anos.
O neopopulismo é filho das democracias liberais Europeias que fizeram do mecanismo de representação formal um carrossel sem fim. Rodam os partidos do centro, cada vez mais rápido, tão rápido que se torna difícil saber onde começa a direita e acaba a esquerda, é uma mancha indistinta de poder. Poderosos com poder para tudo menos para cumprir expectativas de mudança porque os centros de decisão já não estão bem ali: estão em Maastricht, nas regras do Tratado Orçamental, nas escolhas de investimento dos mercados financeiros, e eles obedecem-lhe com fé.  
Estas democracias liberais foram incapazes de responder à crise. Por toda a UE partidos socialistas, sociais democratas e demo-liberais deixaram que perdas financeiras fossem impostas aos povos. Mais, ajudaram a forjar a narrativa dos bons e dos maus, dos preguiçosos e dos trabalhadores, dos devedores e dos credores. Deixaram que a austeridade e o “rigor orçamental” se tornassem o centro da política, sem querer ver que há mais de moralismo no austeritarismo do que de racionalidade económica. 
Hollande era a esperança da mudança endémica. A que pede com licença aos mercados para poder manter os mínimos de um projecto de Estado Social que é cada vez mais incompatível com a sua existência. Hollande perdeu, ficaram os mercados e Berlim. A sua derrota é também a derradeira derrota de uma terceira via, que acha possível conciliar austeridade com direitos sociais ou democracia com Tratados Orçamentais.
Neste cenário cavalgam os nacionalismos xenófobos. Os que exploram o medo da pobreza, da desqualificação, da perda de estatuto para tornar apetecíveis programas de combate a todas as forças externas: das troikas aos mercados, passando pelos emigrantes, judeus, ciganos, homossexuais, ou qualquer outro fator de ameaça.
Cavalgam ainda, em conjunto ou separado, os populismos anti-sistema, os partidos anti-partido, os políticos anti-política. São respostas ao deficiente sistema de representação, que atraem mais cólera que qualquer desejo de um projecto alternativo, e que, como no caso de Marinho Pinto, facilmente se combinam com traços de autoritarismo, sexismo e homofobia. 

O resultado das eleições europeias exige-nos todas as reflexões. Elas interpelam directamente os partidos do bloco central. Afinal, esta é a sua Europa, estes são os seus Tratados, esta foi a sua resposta a uma crise financeira que nada nem ninguém garante que não se repetirá em breve.  
A esquerda também tem conclusões a retirar. A necessidade de romper com o rotativismo é hoje mais urgente, embora não necessariamente mais fácil. Programas claros, estratégias compreensíveis, alternativas credíveis e compromissos desempoeirados. É o que se exige a uma esquerda que, melhor que ninguém, sabe do perigo das Benevolentes. 

* Artigo publicado no Expresso online

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