Viagens e outras viagens está longe de se confundir com um
guia turístico. Nesta obra, Antonio Tabucchi leva-nos numa viagem por um mundo onde
as identidades se impõem face às bandeiras e interpela-nos sobre a pretensão de
apropriação do espaço e do tempo. É que, como adverte o autor na nota que
precede as crónicas, “pousar os pés no mesmo chão durante toda a vida pode
originar um perigoso equívoco, o de fazer-nos crer que essa terra nos pertence”.
Antonio Tabucchi nasceu na comuna de Vecchiano, na região
italiana de Pisa, em 1943. Chegaria a Portugal mais de duas décadas depois, no
verão de 1965, depois de ter ganho uma bolsa de estudo para o melhor aluno do
curso de Português. Fez de Lisboa a sua morada, vindo a falecer nesta cidade na
manhã do dia 25 de março de 2012. Pelo caminho, emprestou à política um pouco
do seu desassossego. Apoiou Mário Soares e foi candidato pelo Bloco de Esquerda
ao Parlamento Europeu. Com ou sem atividade pública, utilizou a escrita como
instrumento de um combate que não conhece fronteiras: da crítica do salazarismo
num Portugal atrasado em que “todos vestiam de preto e usavam chapéu”1 à intransigência na urgência de “desberlusconizar a Itália”2.
Nas viagens, como na literatura e na política, o “nomadismo intelectual”3 de Tabucchi atravessou os cinco continentes e pisou o chão de dezenas de países. As crónicas que o autor reúne neste livro foram escritas com propósitos distintos e em tempos diferentes. Ainda que o facto de as datas nem sempre estarem assinaladas dificulte a leitura de alguns elementos circunstanciais, a coerência estilística e a estruturação da obra permitem-nos seguir uma lógica que nos transporta das “viagens com objetivo” aos mais improváveis encontros de um “imaginário construído por interposta pessoa”. As crónicas contêm, ao mesmo tempo, a crítica dos percursos maquinais do turismo pré-formatado e interrogações sobre as lógicas hierarquizadas de construção dos lugares (provavelmente, com o sentido próximo daquele com que Brecht questionara a paternidade da construção de Tebas e Babilónia). Afinal, o que é um lugar sem a sua gente? Ou o que é um viajante sem “um olhar afectuosamente atento ao quotidiano do povo miúdo da cidade”?
As referências literárias, inteligentemente entrelaçadas nas
descrições do espaço, transformam as curtas crónicas em fotografias
pormenorizadas dos lugares e dos seus povos. É assim, por exemplo, quando
deambulamos com Jorge Luis Borges pelas ruas de Buenos Aires, onde “resta a
beleza imóvel e onírica de uma cidade metafísica surpreendida no seu mistério”.
Ou quando, fugindo do Cairo prometido pelos catálogos comerciais, nos encontramos
no souk do bairro de Naghib Mahfuz, escritor egípcio que recebeu o Prémio Nobel
da Literatura em 1988. Mais tarde, na Lisboa que nos faz sentir uma “nostalgia
do futuro”, tomamos um café expresso à italiana “na companhia daquele senhor de
sorriso inefável”. O sorriso é o de Fernando Pessoa, cuja estátua de bronze
ocupa uma das mesas d’ A Brasileira e cuja obra foi estudada e traduzida por
Tabucchi. “Viajar! Perder países! / Ser outro constantemente”, começa assim um
poema escrito por Pessoa em 19334.
É disso que tratam estas crónicas de Tabucchi: do que se ganha a cada chegada,
mas também do que se perde a cada partida.
“Sou um viajante que nunca fez viagens para escrever sobre
elas, o que sempre me pareceu estúpido. Seria como se alguém quisesse
apaixonar-se para escrever um livro sobre o amor”, avisa o autor nas primeiras
páginas. Viagens e outras viagens é um livro sobre os lugares e sobre as
pessoas que Tabucchi conheceu. Mas é mais do que isso. É um mapa aberto, que
depressa nos faz perceber que “o mundo é mais do que este buraco em que
vivemos”.
Viagens
e outras viagens
Antonio Tabucchi
Edição/reimpressão: 2013
Editora: Publicações D. Quixote
256 páginas
[Recensão crítica publicada originalmente na edição #5 da Revista Vírus (pp. 71-72)]
1 «Antonio Tabucchi. Errante
narrativa do desassossego», jornal i
(26 de Março de 2012).
2 «“Desberlusconizzare” l’Italia»
foi o título do último artigo de Tabucchi no jornal El País (12 de Novembro de 2011).
3 «Tem que me apetecer escrever
como me apetecem pastéis de nata», entrevista ao jornal i (4 de Outubro de 2010).
4 Fernando Pessoa, em 20 de
Setembro de 1933.
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