24 junho 2014

O Rock Rendez-Vous e o dever da memória



Demasiadas vezes lamentamos a forma como destruímos a nossa memória coletiva. Passamos nas ruas e nas cidades e não reparamos na forma como os objetos e os lugares transportam consigo a história e a memória das nossas sociedades. Parte do património histórico, cultural e social vai sendo esquecido ou destruído, restando-lhe um lugar de sobrevivência confortável nos registos historiográficos que se vão empilhando em bibliotecas.

Por estes tempos apercebi-me de como muitos dos símbolos que marcaram de forma inquestionável os anos 80 e as transformações socioculturais de Portugal nessa época têm sido votadas a uma relativa invisibilidade ou, em alguns casos, a uma destruição que se traduzirá no esquecimento. Foi essa realidade que encontrei ao começar a estudar o Rock Rendez-Vous, uma das mais importantes salas de espetáculos lisboetas. Um espaço onde nasceu e explodiu o novo rock português, mas também onde se alastrou uma nova cultura urbana e juvenil que transformaram de forma acelerada e particularmente intensa as sociabilidades dessa década.


O Rock Rendez-Vous foi uma das mais conhecida sala de espetáculos de Lisboa dedicada ao rock português. Criado em Dezembro de 1980 e encerrado em Julho de 1990, este foi um espaço situado na Rua da Beneficência ao Rego e que substituiu o antigo Cinema Universal. Durante todo o século XX até a abertura da sala em 18 de Dezembro de 1980, o espaço foi sempre uma sala de cinema. Em 1928 foi inaugurado como Cine Bélgica, em 1968 mudou de designação para a cinema universitário e só em 1973 se transformou no famoso Cinema Universal, que depois de 1974 foi umas das principais salas de exibição filmes revolucionários e de cinema fora dos circuitos comerciais.

Cartaz da projeção de "O ano 01" em 1977

O Rock Rendez-Vous foi inaugurado com um concerto de Rui Veloso cantando a sua “Rapariguinha do Shopping”, single do seu primeiro disco, “Ar de Rock”, de 1980. Rui Veloso enchia a sala com o blues e um twist que pouco se conhecia na música portuguesa daquela época. Por aquela sala passaram bandas como os Xutos e Pontapés, os Heróis do Mar, os Mão Morta, os Táxi, os Rádio Macau, os GNR, os Peste e Sida, os UHF, os Radar Khadafi, os Graal Blues Band de Paulo Gonzo, os Kús de Judas, os Jafumega, os Aqui Del´Rock e tantas outras. No “Concurso de Música Moderna” inaugurado em 1984 candidatam-se  todos os anos dezenas de novas bandas e Lisboa corria à sala para ouvir as novidades que o rock trazia e que a liberdade deixava aparecer.

O Rock Rendez-Vous e muitas outras salas foram os espaços de uma juventude que viu nascer a primeira década em liberdade e que decidiu experimentar tudo. Por lá experimentou um rock cosmopolita, rejuvenescido e enfurecido. Por lá passou uma geração nova construindo aquele espaço como um dos mais importantes símbolos da nossa história recente.

Tudo mudou ao passar hoje pela mesma rua. No espaço onde era o Rock Rendez-Vous hoje pode comer-se um bolo, uma tosta ou beber um café. O espaço foi completamente destruído e hoje é o “Galão 2”. Por cima são habitações. As casas e o comércio acabaram com a memória física das importantes salas de cinemas lisboetas do século XX e da mítica sala de espetáculos.


Quem hoje passa naquela rua, não se apercebe de como Portugal evolui naquelas esquinas. A memória perde-se, os espaços destroem-se mas ainda há uma memória que ainda resiste. Não é a minha, que já nasci depois do fecho daquela sala. Mas é a memória daquelas e daqueles que viveram intensamente aquele espaço e aquela década. 

Conta o esquecimento e a invisibilidade, é urgente uma insurreição cultural dessa memória. É essa a única possibilidade de continuarmos a saber como aqui chegámos e, necessariamente, para onde caminhamos. Longa vida ao Rock Rendez-Vous. 

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