A
OCDE esteve em Lisboa para uma cerimónia de propaganda às políticas de
austeridade em Portugal e na Europa. Angel Gurría, o seu secretário-geral, encontrou-se com Passos
Coelho para a apresentação pública de um relatório que o próprio governo encomendou
sobre o sucesso das suas reformas e as recomendações da OCDE sobre a política
económica, fiscal, laboral e educativas para os próximos anos.
Nem a propósito, o Inflexão têm-se dedicado desde Janeiro deste ano a uma análise
detalhada dessas problemáticas. Olhando para os dados, a conclusão parece
simples: os mitos da OCDE não resistem a uma análise objetiva.
O relatório é extenso mas dele
gostaria de destacar seis temas cuja importância para sociedade e para a economia
portuguesa merece o nosso escrutínio crítico. São eles as desigualdades sociais, o problema do desemprego, o trabalho, as finanças, a educação e, finalmente, a ciência. Estes são alguns dos assuntos mais tratados no relatório e mais decisivos para a sociedade portuguesa. Para os analisar com seriedade exige-se um olhar rigoroso e objetivo e não meramente um panfleto ideológico mascarado de relatório técnico. Caso a caso, vamos ao essencial.
1. Desigualdade sociais
Diz
a OCDE:
“Portugal
conseguiu reduzir a desigualdade na distribuição do rendimento e conter o aumento da pobreza” (pp.3)
“Apesar
das reformas políticas recentes, levadas a cabo no contexto da consolidação
orçamental, terem transferido, de uma forma genérica, a maior parte dos
encargos para as famílias de elevado rendimento, as simulações sugerem que o
grupo com o menor rendimento sofreu também perdas significativas no rendimento
disponível em virtude das reformas” (pp.11)
Será
mesmo assim?
Numa
análise que aqui desenvolvi sobre a diferença entre os 10 % e 20 % mais ricos e
os 10 % e 20 % mais pobres em Portugal, cheguei à
conclusão de que os anos de austeridade e das “reformas estruturais” que a OCDE elogia, correspondem na verdade a uma intensificação da desigualdade económica. A OCDE
pode ter-se esquecido destes dados, nós não esquecemos:
Fonte: INE (Inquérito às condições de vida 2013) |
Poderá a OCDE perguntar-se sobre que relação tem a desigualdade económica com a pobreza. É uma boa questão que o Ricardo Moreira aqui ajuda a responder: "O Inquérito às Condições de Vida e Rendimento do INE revelou que o risco de pobreza em 2012 tinha subido para 18,7% e que, fixando os rendimentos, no valor de 2009 - período anterior à entrada em vigor do regime de austeridade - 1 em cada 4 pessoas estava em risco de pobreza".
Ao contrário do que diz a OCDE Portugal não conseguiu reduzir a desigualdade, nem conter o aumento da pobreza. Foi precisamente o oposto.
2.
Desemprego
Diz
a OCDE com um tom próximo do Governo:
“Os indicadores económicos recentes
apontaram algumas tendências positivas, incluindo a diminuição do desemprego”
(pp.5).
Se
os dados mostram uma tendência positiva ou negativa, isso depende, neste caso, da convicção moral do analista. Mas há coisas objetivas que os dados
nos dizem. Desde logo, olhemos para o que tem acontecido sobre as médias anuais de inscrição
do Centro de Emprego:
Fonte: PORDATA/IEFP |
Existe uma tendência, é verdade. Uma tendência de crescimento ininterrupto. Mas o problema
é muito mais sério do que parece.
Mariana Mortágua expôs aqui, em Fevereiro, com imenso
rigor e detalhe o problema central dos dados sobre o desemprego: o seu cálculo é absolutamente superficial.
A forma de cálculo das taxas de desemprego nas estatísticas oficiais escondem muitas
situações reais de desemprego que não são contabilizadas. Mas Mariana Mortágua
vai mais longe incluindo no cálculo os casos excluídos nos dados oficiais.
Conclusão: no 3º trimestre de 2013 a taxa real de desemprego não era 15,6 % mas antes 26,6 %.
É verdade: nem sempre a realidade cabe na estatística oficiais.
3.
Trabalho
Vamos
agora às questões do trabalho e das políticas laborais. Este é, aliás, um dos
assuntos mais desenvolvidos pela OCDE. Vejamos algumas das suas conclusões:
“Desde 2011, foram realizadas reformas importantes para reduzir os
critérios restritivos em matéria de proteção do emprego” (pp.13)
“Embora estes resultados [elevadas taxas de desemprego] estejam associados
à crise, refletem também as inflexibilidades estruturais resultantes dos
rigores da proteção ao emprego, da negociação salarial, das fracas políticas ativas
do mercado de trabalho e das prestações de desemprego indevidamente
distribuídas” (pp.21)
"Serão necessárias mais medidas para promover a negociação coletiva ao nível
das empresas, incluindo a eliminação da necessidade de intervenção das
associações sindicais” (pp.25)
“ recomenda-se que as autoridades mantenham o valor do salário mínimo
inalterado até que existam sinais claros de recuperação do mercado de trabalho”
(pp.25)
A OCDE apresenta-nos um aparente “relatório técnico”, mas
aqui se vê bem como a "técnica" tresanda a ideologia. Para a OCDE, Portugal tem
uma elevada proteção do emprego e uma rigidez do seu mercado de trabalho acrescida do facto de existirem organizações sindicais que protegem
demasiado negociais salariais. Isto resolve-se, segundo a OCDE, com mais
liberalização do mercado de trabalho e com o congelamento do salário mínimo.
Vale a pena lembrar antes de mais à OCDE os dados que Joana
Louçã de forma tão pertinente aqui trouxe a debate:
Fonte: Maria da Paz Campos Lima |
Como escreveu Joana Louçã: “O gráfico abaixo (com dados de Maria da Paz Campos Lima) mostra a evolução do número de trabalhadores abrangidos por convenções colectivas desde 2008, no início da crise, até 2013. Inicialmente, esta forma de contratação abrangia quase dois milhões de trabalhadores (1.894.788); em 2013 não chega a duzentos e cinquenta mil(242.239 pessoas)".
Tem razão: Passos Coelho vê estabilidade onde só há precariedade. O mercado de trabalho não está, nem de perto
nem de longe, blindado pela proteção coletiva dos trabalhadores.
Mas ainda sobre
a espantosa (embora pouco original) ideia de que não se pode mexer no salário
mínimo até que haja “sinais de recuperação”, vale a pena lembrar que o salário
mínimo português é o mais baixo da zona euro e sobretudo que, depois dos
descontos, uma pessoa que em Portugal recebe o salário mínimo não aufere
rendimento suficiente para sair do limar da pobreza.
A análise da teoria subjacente à proposta da OCDE já foi muito bem descrita e criticada por Adriano Campos neste blogue em Abril.
Os defensores da tese de que o salário mínimo destrói o emprego só estão a
defender uma única tese: a solução para o desemprego passa pela pobreza de quem
trabalha.
No terreno laboral o que aconteceu em Portugal é claro: (a) utilização de acordos para a flexibilização do trabalho; (b)
redução das remunerações por trabalho extraordinário; (c) a reforma do quadro
legal de redução/suspensão do contrato de trabalho por motivos económicos; (d)
cortes no 12º e 13º mês; (e) aumento de impostos; (f) redução da proteção
social; (g) diminuição do valor da indemnização a pagar de 30 para 20 dias por
cada ano de trabalho; (h) aumentaram o horário de trabalho. Enfim: flexibilizar
o trabalho, reduzir a proteção social e facilitar o despedimento.
Mas a OCDE
não está satisfeita e acha que podemos ir mais longe:
“Todavia,
a proteção ao emprego dos trabalhadores permanentes continua a ser mais elevada
do que a média da OCDE e poderá ser reduzida ainda mais”(pp.24).
Sinistro. No mínimo.
4.
Finanças
Vejamos
agora o que a OCDE pensa sobre o balanço das contas. Diz o relatório:
“Os
anos que antecederam a crise foram caracterizados por níveis excessivos de
endividamento em todos os sectores da economia; no entanto, foram feitos
progressos” (pp7.)
“A
consolidação orçamental e a desalavancagem têm sido levadas a cabo por Portugal
de um modo relativamente equitativo” (pp9)
Cada
um terá as suas crenças. Mas e se formos mesmo aos dados concretos?
Fonte: INE |
Os dados foram trabalhados pela Mariana Mortágua e não há grandes dúvidas: a austeridade aumenta a dívida, não resolve o défice e
destrói a economia.
Mas
poderíamos pensar, como a OCDE sugere, que a “consolidação orçamental” tem sido
feita de modo equitativo. Eu pessoalmente duvido. E tenho pelo menos 4 especialistas do FMI do meu lado.
5.
Educação
A
OCDE vai ao ataque e é clara na proposta:
“Um
maior envolvimento do empregador na definição dos programas escolares/universitários
e a atribuição de mais oportunidades de experiência profissional aos alunos irá
melhorar a correspondência entre as competências adquiridas no ensino e as
necessidades do mercado de trabalho.” (pp.31)
Já aqui expus em Fevereiro a forma como a pretexto da “empregabilidade” se têm desenvolvido políticas de racionalização da rede de
ensino com o objetivo de transformar as universidades, dualizando vias e
reduzido a oferta.
Infelizmente, essa estratégia foi confirmada pelo governo logo em Junho.
Mas sobre esse aspeto valia a pena a OCDE responder a uma pergunta: terão as
políticas de austeridade, que tanto elogiam no relatório, afetado as condições dos
jovens em Portugal? Posso dar uma ajuda na resposta:
Fonte: INE |
Como aqui argumentei: “Segundo estes cálculos, em 2012 existiam 14,1 % de indivíduos
com idades entre 15 e 24 anos que não estavam nem a estudar, nem a trabalhar.
Esta percentagem representa 159,5 mil pessoas… Mas alargando a faixa etária
para a população entre 25 e 34 anos, a taxa é ainda maior: 18,9 %, ou seja,
275,4 mil pessoas. O problema está mesmo aí. O desemprego, a precariedade, a
emigração e perda de expectativas sobre as instituições de ensino estão a
transformar este país num pântano sem fundo”
6.
Ciência
Finalmente, vamos
então à ciência. Propõe a OCDE:
“Criar maiores incentivos e melhores canais
para a comercialização da investigação académica, incluindo através do reforço
das relações entre os gabinetes de transferência de tecnologia das universidades
e a indústria” (pp.36)
“Melhorar
as condições estruturais para o empreendedorismo” (pp.36)
A análise do relatório não está muito longe das declarações de Pires de Lima ou do próprio presidente
da FCT quando foram confrontados com os cortes avassaladores no apoio à
investigação. Mas a ligação entre a ciência e a comercialização da investigação
é só uma forma de não debater o essencial. E o essencial são os dados que Joana Louça aqui nos trouxe:
É
preciso recuarmos a 1999 para encontrarmos um ponto de comparação com a nossa
situação atual. Mas o problema não é só nos apoios, é nas próprias condições de trabalho dos investigadores em Portugal como bem lembrou Sofia Roque aqui. A saber:
- 69% dos
investigadores são bolseiros e apenas 15,7% têm um vínculo laboral. Na investigação científica, a máxima precariedade é a regra.
- 77,8% dos investigadores nunca tiveram um contrato de trabalho e 50,2% dos bolseiros acumulam entre 5 e 15 anos nesta condição. Na investigação científica, apenas uma minoria tem acesso a trabalho com direitos, uma vez que as bolsas e a precariedade eternizam-se.
- Apenas 14,4% dos investigadores trabalham mediante um contrato de trabalho. Na investigação científica apenas uma minoria tem acesso a trabalho com direitos.
- 62,7% dos investigadores acumularam duas ou mais bolsas na mesma unidade de investigação. Ser investigador em Portugal é andar de bolsa em bolsa, sem vislumbrar a possibilidade de integração numa unidade de investigação.
- 64,7% dos investigadores doutorados são bolseiros. A condição de bolseiro é maioritária mesmo entre quem já completou a sua formação académica, o que indica a existência de milhares de investigadores privados da construção de uma carreira científica.
- 79,5% dos investigadores que estiveram desempregados não tiveram acesso a protecção social no desemprego. Na investigação científica, a desproteção social no desemprego é massiva.
- Apenas 21,5% dos bolseiros rejeitam a hipótese de emigrar. A relação entre a máxima precariedade, o desemprego e a vontade de sair do país é inequívoca.
- Apenas 38,8% dos investigadores com contrato rejeitam a hipótese de emigrar. O risco da “fuga de cérebros” é iminente, considerando que até uma maioria daqueles que têm um contrato de trabalho, muitas vezes precário, pondera emigrar.
- 77,8% dos investigadores nunca tiveram um contrato de trabalho e 50,2% dos bolseiros acumulam entre 5 e 15 anos nesta condição. Na investigação científica, apenas uma minoria tem acesso a trabalho com direitos, uma vez que as bolsas e a precariedade eternizam-se.
- Apenas 14,4% dos investigadores trabalham mediante um contrato de trabalho. Na investigação científica apenas uma minoria tem acesso a trabalho com direitos.
- 62,7% dos investigadores acumularam duas ou mais bolsas na mesma unidade de investigação. Ser investigador em Portugal é andar de bolsa em bolsa, sem vislumbrar a possibilidade de integração numa unidade de investigação.
- 64,7% dos investigadores doutorados são bolseiros. A condição de bolseiro é maioritária mesmo entre quem já completou a sua formação académica, o que indica a existência de milhares de investigadores privados da construção de uma carreira científica.
- 79,5% dos investigadores que estiveram desempregados não tiveram acesso a protecção social no desemprego. Na investigação científica, a desproteção social no desemprego é massiva.
- Apenas 21,5% dos bolseiros rejeitam a hipótese de emigrar. A relação entre a máxima precariedade, o desemprego e a vontade de sair do país é inequívoca.
- Apenas 38,8% dos investigadores com contrato rejeitam a hipótese de emigrar. O risco da “fuga de cérebros” é iminente, considerando que até uma maioria daqueles que têm um contrato de trabalho, muitas vezes precário, pondera emigrar.
Sobre isto, nem uma linha.
7.
Duas conclusões
A
do relatório da OCDE:
“À
medida que Portugal abandona com êxito o programa de assistência conjunto da
UE, FMI e BCE e sai da recessão, é mais importante do que nunca sustentar e
reforçar os resultados alcançados” (pp.3)
A
minha:
À
medida que Portugal abandona o programa de assistência e se preparam mais políticas de austeridade a partir do Tratado Orçamental e das sanções que ele vai impor, a economia portuguesa está
destruída e as condições de vida e de trabalho são deploráveis. É mais
importante que nunca sustentar um programa político, económico e financeiro
alternativo que recupere a soberania democrática, concretize a reestruturação da dívida e que
salve o país deste desastre que a OCDE veio a Portugal branquear.
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