O sistema partidário
português terá muitos vícios e problemas. Mas um dos seus aspetos positivos é o
facto de na maioria dos partidos os documentos políticos em discussão serem
públicos e por isso suscetíveis de debate na opinião pública. É a esse debate que
procurarei responder abordando a única moção estratégica que foi apresentada ao I
Congresso do partido Livre que acontece hoje em Sintra e que contará com um
discurso de António Costa.
Cada partido escolhe
legitimamente as suas formas de organização mas começo por assinalar um dado
estranho: a moção que vai a votação no Congresso é uma moção discutida e
aprovada pela direção do partido (o Grupo de Contacto). É caso curioso.
Normalmente, nos congressos a apresentação de moções de orientação é feita por
grupos de militantes e não pelos órgãos do partido. Poderá suceder que uma
moção de orientação inclua todos os membros da direção, mas ainda que assim
seja, a proposta é sempre feita pelo conjunto dos militantes proponentes e não
pelo órgão em si. É estranho um órgão de direção, propor, enquanto órgão, a sua
própria continuidade. Mas deixando as questões organizativas, vamos a questões
políticas.
Começo por um elogio:
a moção de orientação estratégica do Livre faz uma boa análise da evolução da
situação portuguesa e europeia. Portugal foi devastado pela selvajaria liberal
que, agarrada ao dogma da austeridade, destruiu a economia e apontou fogo sob o
Estado-social e a Constituição. Tem razão o Livre quando diz que Portugal tem
vivido uma “ditadura do curto prazo” em que “de trimestre e trimestre” se foram
impondo constrangimentos que bloqueiam o país. E tem ainda mais razão quando
afirma que a essa ditadura, corresponde uma tirania: “os mesmos atores, os
mesmos partidos, os mesmos comentadores, as mesmas ideias batidas” (p.2).
Perante essas duas constatações, uma esquerda que queira existir não tem outra
responsabilidade que não seja a de lutar por um programa alternativo a essa
ditadura e a essa tirania que têm transformado este país num pântano. Mas quais
são para o partido Livre os contornos dessa alternativa?
É certo (e a moção
refere-o) que a atual União Europeia tem sido capturada por uma elite dirigente
que esqueceu os interesses gerais das populações, mas o Livre apresenta uma
tese que, embora seja advogada por vários e improváveis setores à esquerda,
merece ser analisada com seriedade: a tese é a de que a Constituição é o centro
estratégico da resposta política e que, a esse centro, deve corresponder uma
frente eleitoral progressista. Como advoga o Livre, “esta dupla estratégia do
arco constitucional e da frente progressista tem também um duplo objetivo, de
proteção e de construção” (pag.4). Com ela defendem um eixo político que se
estrutura na recusa da revisão constitucional e na destruição do Estado-social
e que por isso está disposto para a defender numa governação progressista, a
que o Fórum Manifesto também tem chamado “uma governação decente”.
Esta tese, sendo
absolutamente legítima, desiste de enfrentar o principal instrumento que
bloqueará qualquer alternativa em Portugal e na Europa: a entrada em vigor do
Tratado Orçamental. A entrada em vigor deste Tratado vai inviabilizar qualquer
política que defenda o Estado-social e a Constituição. Ele impõe que Portugal
reduza a sua dívida para 60 % do PIB e o seu défice estrutural para 0,5 %. E
deve fazê-lo sob orientação de políticas de redução das funções e do papel do
Estado pois qualquer investimento em políticas contra-cíclicas que permitam
estimular o consumo, criar emprego e proteger as pessoas é proibido e
previamente fiscalizado pela Europa. A dívida pública portuguesa estava no
primeiro trimestre de 2014 em 132,4 % do PIB e o défice em 2013 estava nos 5 %.
Para cumprir este plano de loucos Portugal tinha de conseguir reduzir 72,4 % de
dívida, isto é, segundo os valores do PIB de 2013, uma modéstia quantia de
quase 120 mil milhões de euros. Ao mesmo tempo não pode fazer investimento
público, tem de implementar mais austeridade e continuar a desmantelar o
Estado-social. Se Portugal não cumprir estas metas (como sabemos que não vai
cumprir), o Tribunal Europeu de Justiça passa a ter poder de nos imputar uma multa
ou sanções pecuniárias compensatórias que obrigam a mais austeridade.
É certo que o Livre
diz (e bem) que “é necessário iniciar um processo de renegociação da dívida
pública e de revogação do Tratado Orçamental” (pag.9), mas exatamente na mesma
página admite que “sem revisão substancial das regras do Tratado Orçamental não
é possível implementar uma política verdadeiramente progressista em Portugal”.
Em que ficamos? O Livre pretende fazer parte do campo político que defenderá
uma “revisão das regras do Tratado Orçamental” ou do campo de quem quer a sua
recusa imediata?
A dúvida permanece em
todo o documento, mas há dois sinais que vale a pena serem destacados. O
primeiro é o facto do partido argumentar que a recusa ou revisão do Tratado só
poderá ser feita por governos legitimamente eleitos. Essa tese tem um problema:
é que se tivermos governos que não o queiram fazer, o Livre não apresenta
qualquer perspetiva de como a mobilização popular o pode impor. E há um
instrumento para isso: a exigência de um refendo ao tratado. E o segundo sinal
perigoso é o de que o Livre, na análise dos protagonistas de uma solução de
governo alternativo, inclui o Partido Socialista, que não só aprovou com
orgulho o Tratado Orçamental com a direção anterior, como agora defende uma
“leitura inteligente e flexível desse tratado”.
O “arco
constitucional” é por isso absolutamente oposto ao “arco do tratado
orçamental”. Quem aceita cumprir o Tratado Orçamental não terá outra hipótese
que não seja a de enfrentar a Constituição e o Estado-social. É por isso aliás
que o destacado dirigente do PS António Vitorino já disse que “quando o PSD
passar à oposição, vocês [jovens da JSD] vão divertir-se imenso com o que o TC
vai fazer a um Governo do PS”. António Vitorino está totalmente certo. E têm
razão as 129 personalidades de Esquerda que no “Manifesto por um país” identificam muito claramente
que só existirá uma alternativa se “se identificar o rumo e a rota para
Portugal dentro da UE, recusando o Tratado Orçamental e discutindo se Portugal
deve ou não manter-se no euro”.
O campo do PS, a que
o Livre elogia “os sinais de abertura e mudança”, dirá que vai defender a
Constituição e o Estado-social. Mas no quadro do Tratado Orçamental e sem uma
reestruturação profunda da dívida, só mesmo a ingenuidade nos poderia fazer
acreditar nessa ilusão. E essa, aliás, a conclusão do artigo “PS, uma nova fase
sem revoluções à vista” de Francisco Assis no Público esta sexta-feira:
“contrariamente ao que alguns apressados e estouvados analistas se precipitaram
em concluir, não creio que se esteja perante a iminência de uma revolução no
programa, no discurso ou na estratégia do PS. António Costa é genuinamente um
homem de centro-esquerda, comprometido com o projecto europeu, indisponível
para radicalismos aventureiros, impróprios de um grande partido com vocação
governativa”. Tem razão. António Costa não será protagonista de nenhum
“radicalismo aventureiro” que imponha uma reestruturação da dívida e uma
desvinculação com o Tratado Orçamental.
O Livre terá hoje no seu Congresso a participação de António Costa que irá
convocar o partido para a aventura de fingir que é possível um governo de
esquerda que defenda o Estado-social e simultaneamente cumpra o Tratado
Orçamental. Essa poderia ser uma aventura divertida, não fosse ela uma tragédia
para Portugal.
Sem comentários:
Enviar um comentário