02 outubro 2014

[PUB] Como surgiu e como caiu a I República?

Os cinco erros capitais

*Por Fernando Rosas
A República torna-se presa fácil da conspiração das direitas antiliberais, porque está ferida de uma crise de legitimidade estrutural e mergulhada na instabilidade política e financeira. A isso é necessário juntar a "questão religiosa", a rotura com o operariado e o facto de ter arrastado o país para o desastre suicidário da guerra. Quando uma parte da República tenta corrigir os erros, já é tarde.

A I República nasceu de uma revolução urbana, em Lisboa, conduzida pelo "Bloco do 5 de Outubro", essa aliança entra a plebe urbana da capital, organizada pela Carbonária, e o mundo diversificado da pequena burguesia dos lojistas, dos comerciantes, dos pequenos funcionários públicos, dos caixeiros e amanuenses, capitaneados pela elite letrada das profissões liberais, os chefes do Partido Republicano Português (PRP).

Nasceu, por isso, política e socialmente cercada nas poucas cidades ou vilas realmente urbanas pelo oceano de ruralidade, onde, salvo honrosas excepções, pontificava a Igreja Católica e o cacicato conservador dos senhores da terra. Quer isto dizer que a questão central que se colocava à sobrevivência e à consolidação da I República era a de saber se podia, conseguia ou sabia romper esse cerco através de um ousado programa de reformas de fundo (sufrágio universal, reforma agrária, fomento industrial, reforma educativa, reforma fiscal, Estado social...), que alargasse a sua base de apoio e iniciasse uma estratégia de modernização política e de desenvolvimento sustentado, como hoje se diria e então defendiam vários dos deputados constituintes.
Mas a República do PRP, o partido que herdou a máquina do cacicato monárquico, e, sob a liderança de Afonso Costa, o seu carismático chefe, cedo se transformou na força política dominante do Estado, opta por outro caminho. Vai privilegiar, quase em exclusivo, a sobrevivência à vista, isto é, garantida através da adopção de sistemas eleitorais restritivos, da manipulação eleitoral, da mobilização da "rua" contra os seus adversários quando necessário, da repressão sem quartel contra o movimento sindical, com a preocupação central de agradar às "forças vivas" e de neutralizar o Exército. Se as leis eleitorais restritivas e até a manipulação eleitoral, à luz dos costumes políticos da época, eram encarados sem escândalo maior e até com certa cumplicidade por parte dos partidos republicanos minoritários, o seu uso, juntamente com o resto, para o PRP se perpetuar no poder sem alternância, abriu uma crise permanente de legitimidade à governação dos "democráticos".

Traduzida em instabilidade governativa permanente (golpes militares, ministérios efémeros) e inviabilidade de uma governação estável. A República do PRP cometia desse jeito dois erros que lhe seriam fatais. Por um lado, mostrava-se incapaz de adoptar uma estratégia para romper social e politicamente o cerco, por outro, isso implicava abandonar qualquer propósito de genuína democratização do sistema político herdado do liberalismo oligárquico. Ferida de uma crise de legitimidade estrutural e mergulhada na instabilidade política e financeira, a República tornar-se-ia presa fácil da conspiração montante das direitas antiliberais.

À incapacidade para romper o cerco e democratizar o sistema de representação política a República do PRP juntou outros três erros capitais. Desde logo, o permitir que a justa prioridade da política de laicização do Estado escorregasse para uma "questão religiosa", dando à Igreja Católica o pretexto para concitar o mundo rural contra os "inimigos da religião", contra a República "ateia" e as cidades "grevistas" e "desordeiras" - ou seja, os excessos do jacobinismo davam a uma Igreja, como era a portuguesa à época da implantação da República, ultramontana e subversiva, o poderoso argumento da "religião" para agravar o cerco ao novo regime. Um ataque que se revelaria sempre eficaz, mesmo depois de a questão ser pacificada pelas medidas sidonistas de reforma da Lei da Separação, em 1918.

E a isto se soma talvez a rotura mais grave: a do "Bloco do 5 de Outubro", a da aliança da I República com o operariado organizado. Era esse o sustentáculo do republicanismo nas cidades. A total insensibilidade do novo regime face à questão social, a repressão brutal e quase contínua de que, entre 1911 e 1926, o movimento sindical é objecto acabarão por fazer o operariado organizado desistir da República do "racha-sindicalistas" Afonso Costa, em Dezembro de 1917, como abandonarão a de António Maria da Silva e dos "bonzos" do PRP no pós-guerra. Sendo certo que pela República se tinham batido na Rotunda em 1910, contra a ditadura de Pimenta de Castro em 1915, escalando Monsanto contra o restauracionismo monárquico em 1919 ou saindo em massa, à rua, em Fevereiro de 1924 e de 1925. Depois das deportações sem julgamento de activistas sindicais para as colónias, em 1924 e 1925, a CGT anarco-sindicalista denuncia a "República dos assassinos e das deportações", afasta-se das tentativas de unidade com a esquerda republicana e, na prática, assistirá quase só com condenações pias do "militarismo" ao golpe de 28 de Maio de 1926.

Finalmente a Guerra. Carente de uma estratégia política, económica e social sustentada de sobrevivência e consolidação do regime - aquilo que na República afonsista mais se assemelhou com a formulação de uma certa ideia do "papel de Portugal no mundo" e com o traçar de um caminho para o alcançar -, a política do intervencionismo na I Guerra Mundial traduziu-se numa trágica manifestação do voluntarismo republicanista: o desejo de regenerar Portugal a golpes de audáciae de diplomacia de ideologia. A intervenção assim concebida e executada iria, aliás, com o seu cortejo de dramáticos efeitos económicos, financeiros, sociais e políticos, agudizar todas as dificuldades e contradições do regime, precipitando-o numa crise, à qual, em última análise, ele acabaria por não sobreviver.

Mesmo procurando evitar o risco do anacronismo e contextualizando as escolhas então feitas no espírito dos debates e das prioridades da época, não consigo, ainda hoje, evitar alguma estupefacção perante a espantosa irresponsabilidade com que os defensores da intervenção no teatro europeu (o único que as controvérsias da altura questionavam) arrastaram o país e a República para o desastre suicidário da guerra.

No fundo, a Nova República do pós-guerra exprime a rearrumação da vida política sob os efeitos do conflito mundial e da Revolução russa e de acordo com os novos padrões da luta social e política europeia, com vista a responder aos efeitos da guerra e da crise internacional de 1921. Pela primeira vez, de forma dispersa e instável, emerge um pólo republicano de esquerda, formulando um conjunto de reformas económicas, sociais e financeiras indispensáveis à reconfiguração de uma outra República e com um entendimento pontual com as forças políticas e sindicais operárias.

Mas também as direitas se concentram sob a hegemonia ideológica dos seus sectores antiliberais, autoritários e fascizantes e com uma capacidade e atracção crescente sobre as direitas republicanas e até sobre sectores do inviável centrismo do PRP cuja governação lhes franqueia a ascensão.

Neste combate, as esquerdas republicanas e operárias vão ser derrotadas em dois rounds. O primeiro termina com o golpe de 28 de Maio de 1926, ao qual elas não vão lograr opor-se, quando não o saúdam por ter posto fim ao Governo silvista do PRP. O seu disperso projecto de esquerda republicana não conseguira ganhar força e unidade para regenerar política, económica e socialmente a República, única condição em que seria possível defendê-la.

O segundo round começa onde o primeiro acaba, na decisão de vender cara a vida da República regenerada que se pretendia restaurar, ou seja, na decisão de ir para a revolução armada contra a Ditadura Militar. Foi o reviralhismo, os combates derradeiros dessa guerra civil larvar que oporá o "Bloco do 5 de Outubro" tardiamente reconstruído - republicanos radicais (a que se junta posteriormente parte da direita republicana), redes de republicanos revolucionários (os descendentes da Carbonária) e o que restava do activismo operário anarco-sindicalista, comunista e socialista - à Ditadura Militar e seus aliados. A República devolvida ao que entendiam ser a genuinidade reformadora e progressista dos seus ideais acabaria por cair nas barricadas do reviralhismo, entre 1927 e 1931, ano em que sai à rua o último movimento insurreccional. Mas as conspirações continuarão, tal como os combates posteriores do movimento sindical. Cinco movimentos revolucionários depois, uma greve geral contra a fascização dos sindicatos (18/1/34), uma revolta dos marinheiros (8/9/36), e após mais de quinze milhares de presos políticos, deportados e exilados contados entre 1927 e 1939. Um movimento de repressão maciço e sem precedentes, empreendido pela Ditadura Militar e o salazarismo a partir de 1926, sobre o qual se viabilizaria a difícil transição para o Estado Novo.
Provavelmente, é essa República retemperada e redescoberta com o sacrifício, até há poucos anos quase ignoto, de tanta gente, essa República que inspirou a resistência à Ditadura Militar e ao Estado Novo, enquanto tentativa pioneira da democratização e da modernização social e política do país, que faz sentido lembrar e assinalar nos seus cem anos.

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