26 dezembro 2014

Göran Therborn em busca dos anticapitalistas*


Reconhecido pela sua influente obra no campo do pensamento marxista, Göran Therborn produziu nos últimos anos uma vasta cartografia das resistências contra-hegemónicas e dos movimentos anticapitalistas no século XXI. Tratar os contributos recentes deste sociólogo e emérito professor em Cambridge, submetendo-os ao confronto crítico das correntes de pensamento, é um esforço possível para o entendimento atual das rebeldias sociais. A sua abordagem parte de questões basilares da crítica marxista: a de saber como se estrutura e reproduz a exploração, raiz das desigualdades; a de descortinar a organização do Estado, reflexo das relações conflitivas entre as classes; a de explicar a reprodução da legitimidade, razão da passividade dos que sofrem a mecânica infernal do capitalismo(1). Essa análise desenvolve-se ainda em três tempos distintos: o tempo das revoluções e os seus legados; o tempo das derrotas e as suas persistências; o tempo das resistências e as suas possibilidades.

1. O legado do século das revoluções

Em 1944, na iminência da vitória aliada, George Orwell lembrava, num acabrunhado apontamento jornalístico, a dificuldade de se contar a história – «Muitas vezes, durante a Guerra Civil Espanhola, dei por mim a pensar como nunca seria possível escrever a verdadeira história daquele conflito»(2). As agruras de uma guerra que encerrava o longo período das revoluções europeias – da chegada à Estação Finlândia (1917) à queda de Barcelona (1939) – abria caminho ao realinhamento dos impérios e à capitulação dos grandes partidos comunistas do bloco ocidental (Grécia, França, Itália). Combatente das trincheiras republicanas, Orwell questionava-se sobre a capacidade de fazer perdurar os factos deste choque na passagem do tempo, para lá das relações de poder estabelecidas, chegando a uma conclusão melancólica que ficou para a posteridade: «Em todos os casos chegamos a um número de respostas incompatíveis, de entre as quais uma é adotada como resultado da luta física. A história é escrita pelos vencedores».

(Göran Therborn)

Este fatalismo da razão, cuja herança literária a direita nunca desistiu de se apropriar, é, no entanto, o signo de quem se debruça sobre a derrota para a inscrever na memória. É uma chamada de atenção, mais do que uma desistência. O extenso legado do século das revoluções sofreu a erosão dos ataques políticos e da reescrita da história, desde a pulverização das organizações coletivas provocada pela avalanche neoliberal, até ao surgimento da grande ode pós-moderna ao fim da história e das grandes narrativas. Mas há sinais que permanecem. Göran Therborn(3) apresenta-nos três legados da insurgência revolucionária, cujas consequências merecem o debate.

O primeiro mede-se pelo impacto no espaço capitalista da chamada “ameaça comunista”(4), cuja existência estabeleceu uma dinâmica de pressão reformista, alterando velhas relações de dominação que as novas burguesias buscaram revigorar por outros meios: redistribuição de terras no Japão e Coreia do Sul, avanço dos direitos laborais e salariais na Europa ocidental, apoio ao crescimento económico na América Latina. A referência de Therborn é válida, sobretudo se recordarmos o Plano Marshall para lá dos seus objetivos oficiais, ou seja, o de ser também um instrumento para a reorganização do poder político das burguesias europeias frente a forças comunistas com vasta expressão popular. Faltando-lhe referir que esse ímpeto reformista se estabeleceu, contudo, a partir de planos mais largos de dominação: coerção sobre a representação sindical e coletiva de quem vive do trabalho, sobretudo nos EUA, onde o macarthismo impôs um controlo restrito das organizações sindicais; emergência da hegemonia militar norte-americana (NATO); estabelecimento do pacto fordista de produção na Europa ocidental.

Outro legado pode ser decifrado nas atuais relações de poder e dominação, com o notório enfraquecimento do racismo e colonialismo estatal euro-americano. Na segunda metade do século XX, o ímpeto modernista e nacionalista das primeiras direções anticolonialistas, encabeçadas por Sukarno, Nehru e Nasser, deu lugar à radicalização dos movimentos de libertação submetidos a uma pressão belicista, com resultados um pouco por todo o mundo. O movimento antisegracionista norte-americano não teria alcançado o relevo conhecido sem o impacto da resistência vietnamita, liderada por um dos fundadores do Partido Comunista Francês e membro destacado do antigo Comintern, o experiente Ho Chi Minh. O último abalo revolucionário no espaço da Europa ocidental, o nosso PREC, não teria tido lugar sem a longa luta dos povos africanos guiados por Amílcar Cabral e Agostinho Neto, que encerrou um ciclo de séculos de dominação europeia. Assim como o fim do apartheid na África do Sul e a libertação de Nelson Mandela não seriam possíveis sem a ação dos milhares de soldados cubanos que enfrentaram o exército sul-africano(5). Muitos destes movimentos fracassaram em alcançar os objetivos mais arraigados na cultura marxista onde se inspiraram, fazendo ecoar Frantz Fanon e a sua obra-guia, Os Condenados da Terra (1961), onde dois caminhos se desenhavam claramente: ou a libertação nacional se dava a partir de uma revolução camponesa capaz de instaurar um socialismo participativo e democrático ou o poder das novas burguesias nacionais rapidamente levaria à degradação da ordem política, mantendo um regime de depredação. O seu contributo, todavia, resultou num enfraquecimento duradouro do racismo e da xenofobia à escala global. 


Por fim, o legado da militância e da organização política deixado pelos movimentos revolucionários não é o menor dos seus contributos. Embora sem estabelecer critérios bem definidos, Therborn salienta a presença significativa de forças à esquerda que ainda reivindicam, de alguma forma, a herança comunista e revolucionária em alguns pontos do planeta. Na Índia, onde o Partido Comunista recupera da sua derrota histórica após integrar o governo local de Kerala e Bengala, enquanto a guerrilha naxalita prossegue a sua luta de inspiração maoísta contanto com centenas de milhares de combatentes. Na Europa, onde formações políticas à esquerda dos partidos socialistas alcançam votações significativas na Grécia, Portugal, Espanha, Chipre, Alemanha, França, Dinamarca e Suécia. Na África do Sul, onde os comunistas do SACP integram o governo do ANC. Na América Latina, onde encontramos o mais vigoroso e consistente conjunto destas formações, desde a aliança bolivariana proposta por Chávez (que inclui os governos da Venezuela, Cuba, Equador, Nicarágua e Bolívia) até às alas mais à esquerda nos executivos do Brasil, Uruguai e Chile. A Leste, onde, ao deixar de parte a Coreia do Norte e classificar ceticamente a China como um «espaço capitalista controlado» com algumas possibilidades de insurgência popular (6), Therborn relembra a combatividade e militância sindical dos trabalhadores sul-coreanos, que em 2013 viram falhar o projeto de um partido de esquerda unido. Um cenário global pontilhado por focos de resistência local, criados pelo legado maior do século das revoluções: a multiplicação de um número extraordinário de sacrificados e dedicados militantes.

2. Explicando a derrota

Na subestimação da violência e força bruta ao dispor do reacionarismo bárbaro reside a derrota de muitos movimentos. O massacre de um milhão de militantes do Partido Comunista da Indonésia (1965-66), a captura e execução de Guevara em La Higuera (1967), a chacina de estudantes mexicanos na tenebrosa noite de Tlatelolco (1968), o pesadelo chileno de Allende (1973) foram lutas perdidas nas trevas do século. Há, porém, uma contrarevolução que se instalou no terreno das ideias, apoiada em transformações profundas da organização social, cujas permanências ainda hoje enfrentamos. Como afirma Therborn, «o triunfo do neoliberalismo não foi uma simples questão de ideologia; como os marxistas deveriam antecipar, teve uma firme base material. A financeirização – um conjunto de transformações que inclui a liberalização de fluxos de capitais, expansão do crédito, trocas digitais e a captura de capital dos fundos de pensão e da segurança social – gerou enormes quantidades de capital privado, ampliando-se para lá dos novos centros de casino financeiro».


Este retrocesso no terreno da emancipação coletiva confronta-nos com a derrota mais persistente, a daqueles que se constituíram como maioria social na história política do século XX: a classe que vive do trabalho. O pico de organização coletiva alcançado na década de 1970, com os mineiros ingleses a forçar a queda do governo de Edward Heat, a eclosão grevista de milhares de metalúrgicos na região industrial do ABC Paulista e a expressão popular do primeiro mandato de Miterrand, rapidamente abriu caminho a uma longa derrocada. Num assombro de antecipação às análises que se seguiriam, Eric Hobsbawm proferiu, em 1978, a sua palestra intitulada A marcha da classe trabalhadora parou? (7). A indagação surgia da nova mudança nas relações produtivas, com a mecanização e modernização tecnológica a impor duas consequências de maior: a drástica redução da necessidade de força de trabalho na extração de matérias-primas (minério, energia, suprimentos); o declínio do trabalho manual no espaço do capitalismo avançado.

A emergência do setor terciário, com o enorme aumento de trabalhadores não manuais inicialmente desorganizados, o surgimento de um estrato separado de profissionais e técnicos não mais promovidos entre os trabalhadores experientes mas recrutados fora do chão da fábrica, assim como a precarização intensa imposta pela descentralização produtiva são, igualmente, apontadas por Hobsbawm como dificuldades enfrentadas pelas direções sindicais na sua incapacidade de organização coletiva da classe. Esta conclusão não apaga a evidência da relação de acumulação ter, no passado, imposto igualmente divisões entre os trabalhadores, desde logo entre aqueles que ocupavam diferentes ramos de produção geograficamente separados, os que apresentavam níveis de qualificação distintos e os que concorriam no mesmo patamar de experiência e saber. O que Hobsbawm corretamente constatou foi como a pressão do desemprego e da organização flexível acentuavam esta última divisão, explicando a erosão da consciência de classe para lá do mero declínio do trabalho manual, num contexto de efetivo alargamento da relação de assalariamento e proletarização. 


Esta dupla derrota apresenta hoje, segundo Therborn (8), duas grandes implicações. A primeira diz respeito à alteração dos pontos cardeais do poder. Os cânones estatais do pós-guerra, nacionalização e regulação, foram substituídos pela santíssima trindade do neoliberalismo: privatização, financeirização e beligerância global. O fim da ordem bipolar acelerou os mecanismos de dominação financeira ao ofertar os novos mercados do leste europeu, enquanto a China, com o seu inigualável exército de força de trabalho, se transformava rapidamente no segundo maior centro industrial do planeta. Após décadas de hegemonia atlântica, novos centros e países ocuparam espaço e fortaleceram a sua capacidade geoestratégica. As teses da dependência, tão trabalhadas por André Gunder Frank(9) e Celso Furtado(10), dificilmente explicam hoje a trajetória de crescimento económico dos países emergentes (Brasil, Índia, China e África do Sul). «O capital é capaz de resistir ao choque destrutivo e das cinzas construir um novo espaço geográfico para a sua reprodução», como bem refere David Harvey(11)

A segunda consequência, contudo, mostra-nos que essa aproximação entre alguns países não esconde um dos traços definidores do capitalismo neoliberal: o aumento da desigualdade entre as classes. O fosso entre os mais ricos e os mais pobres tem aumentado de forma significativa, estabelecendo uma concentração de riqueza no topo que ultrapassa os níveis até agora conhecidos. Essa polarização deixa ainda à vista mudanças políticas assinaláveis: «A coesão social é muito menos vital para as elites de hoje do que era para as elites de séculos anteriores. Os exércitos com alistamento obrigatório foram em grande parte substituídos por forças mercenárias; os meios de comunicação têm ajudado a tornar as eleições internas “administráveis”; o consenso económico predominante sustenta que a confiança dos investidores internacionais tem mais influência sobre o crescimento económico do que a coesão do desenvolvimento»(12).

3. Onde estão os anticapitalistas? 

Sumiu-se pela vaga de fundo o futuro histórico da classe ou resta, como cantou José Mário Branco, encontrar os tesouros recuperados do fundo deste mar? Antes de mais, há que tomar em mãos o mapa crítico das rebeldias. «Se quiserem fazer sentido político, as críticas ao capitalismo devem ter – ou arranjar – uma base social». Therborn(13) aponta a existência de quatro tipos de formações que encerram, potencialmente, uma crítica ao desenvolvimento capitalista contemporâneo. A primeira é constituída por povos que mantêm maioritariamente relações de produção pré-capitalistas, dos quais se destacam os povos indígenas e as  populações em luta pela sua autonomia. São pouco numerosos mas influentes em países como a Bolívia, onde os primeiros estão representados na coligação governamental, ou no Mexico, onde os zapatistas ainda conservam a região de Lacandona, no Estado de Chiapas.


A segunda força crítica, que Therborn classifica como “extracapitalista”, é composta por um conjunto muito heterogéneo de excluídos das relações salariais estáveis e reguladas. Dos milhões de camponeses sem terra aos trabalhadores informais e vendedores ambulantes da periferia das megalópoles latino-americanas e asiáticas, passando pelos imigrantes indocumentados e escravizados no espaço europeu, a relação destas populações com o poder político é, regra geral, conturbada e marcada pelo controlo policial e pela instituição de barreiras sociais e espaciais. Protagonistas de mobilizações por vezes contraditórias, estas camadas tem levado a cabo enfrentamentos com grande impacto no Brasil, onde a onda de mobilizações de junho de 2011 se estendeu às periferias de São Paulo e Rio de Janeiro, e no norte de África e Médio Oriente, onde foram um dos elementos centrais na revolta que conduziu à Primavera Árabe.

O terceiro foco de resistência está intimamente ligado à dialética quotidiana do trabalho assalariado. A classe operária industrial apresenta hoje tendências distintas geograficamente situadas. Enquanto no Norte o seu diminuído contingente se encontra numa posição defensiva face aos ataques austeritários, a multiplicação de novos trabalhadores industriais na China, Bangladesh, Indonésia e outras partes do Sul faz crescer a pressão por reivindicações anticapitalistas, embora num contexto de enorme dificuldade para a organização sindical e política. O sucesso do capitalismo continua a produzir a sua antítese destruidora, pelo que o recente surto de greves na China pode dar lugar a transformações mais profundas na organização destes trabalhadores.

É da dialética do capitalismo financeirizado que Therborn vê surgir uma quarta força social que pode dar origem ao que classifica como «novas massas» (14). Estudantes, funcionários qualificados, recém-licenciados, jovens urbanizados e outras camadas da população envolvidas nas novas mobilizações de rua em Espanha, Portugal e Brasil, nas manifestações turcas, nas acampadas do movimento Occupy nos EUA e centro da Europa ou na resistência das praças gregas, «todas elas irrupções contra sistemas capitalistas corruptos, exclusivistas, causadores de polarização social». Neste caso, porém, Therborn rapidamente integra estas populações nas «camadas da classe média», como que pairando numa incerta e instável aliança de classes, incapazes de se dotarem de um princípio de identidade claro. Reconhecendo o perigoso e difuso discurso sobre a “nova classe média”, ele não é menos taxativo quando afirma que «qualquer crítica viável ao capitalismo no século XXI terá que recrutar grande parte da classe média, abordando algumas de suas preocupações e procurando articulá-las numa direção crítica, igualitária».


Neste ponto, não apenas Therborn parece descartar uma crítica congruente das novas relações do trabalho, acompanhando perigosamente uma classificação de classe sem relação específica com a produção, como se aproxima da crítica marcada pela desilusão socialdemocrata. À semelhança de Guy Standing (15), que vê na formação do precariado um efeito da desagregação do modelo social europeu, constituindo-se como uma classe incapaz de se organizar e perigosa nas potenciais alianças de classe, Therborn encerra os protagonistas dos novos protestos num espaço avulso, desconectado das relações de produção e como efeito, mesmo que distorcido, do declínio da velha classe operária manual. Essa análise peca pela insuficiência de ver no exército de precários do setor terciário a nova maioria social dos que vivem do trabalho, pelo menos no espaço da Europa ocidental, capazes de resgatar laços de solidariedade e combatividade com outros trabalhadores, assim como na insurgência da construção de direções anticapitalistas para as suas lutas. Foi desta massa que se fez o núcleo central das novas mobilizações, situá-los corretamente no mapa dos anticapitalismos é um primeiro passo para, no futuro, se poder vencer e escrever esta história.

* Publicado na Revista Vírus, nº6 (novembro 2014). 

NOTAS

(1) THERBORN, Göran (1978), What does the ruling class do when it rules?, Londres: NLB.

(2) ORWELL, George, "Revising History", Tribune (1944). 

(3) THERBORN, Göran (2012), "Class in the 21st Century", in New Left Review, 78 (Nov-Dez),  pp.5-25.

(4) Como nos lembra Eric Hobsbawm (2012, How to Change the World: Tales of Marx and Marxism, Londres: Little Browm), um terço da humanidade vivia sob regimes regidos por partidos comunistas no período do pós-guerra. 

(5) Entre 1975 e 1991, sessenta mil cubanos combateram na Guerra das Matas de Angola, impedindo o avanço das tropas sul-africanas e da Unita sobre o território dominado pelo MPLA. Entre conflito foi o derradeiro capítulo de ajuda cubana aos movimento anticolonialistas africanos desde que Che Guevara pela primeira vez atravessou o lago Tanganita em 1965. Uma história magistralmente contada pela documentarista Jihan El Tahri, no seu Cuba, uma odisseia africana (2006). 

(6) THERBORN, Göran (2008), From Marxism to post-marxism? Londres: Verso. 

(7) HOBSBAWM, Eric (1978), "The Forward March of Labour Halted?", Marxism Today (setembro, 1978). 

(8) Ibidem. 

(9) FRANK, André Gunder (1979), Dependent Accumulation and Underdevelopment, Londres: Monthly Review Press.

(10) FURTADO, Celso (1967), Teoria e Política do Desenvolvimento, São Paulo: Editora Nacional.

(11) HARVEY, David (2014), Seventeen Contradictions and the End of Capitalism, Londres: Profile Books.

(12) THERBON, Göran (2014), "New Masses", in New Left Review, 85 (Jan-Fev), pp. 7-16.

(13) Ibidem.

(14) Ibidem.

(15) STANDING, Guy (2011), The Precariat: the new dangerous class, Londres: Bloomsbury.







*Publicado na Revista Vírus (novembro 2014, em breve disponível online).

Sem comentários:

Enviar um comentário