17 fevereiro 2015

Duplopensar

O DN afirma, em notícia intitulada "UE e Draghi protegem Portugal de contágio grego", que "as instituições europeias estão preparadas para dar a mão a Portugal, além da liquidez já assegurada pelos países do euro, com uma intervenção extraordinária do BCE, por exemplo, para contrariar os efeitos de uma eventual desagregação da união monetária - escalada dos juros, perda de confiança, recuo do investimento e recessão económica."

Ficamos sem perceber como é que o BCE sobrevive à desagregação da união monetária e como poderia, sem violar clamorosamente os seus estatutos e o Tratado de Lisboa, apoiar directamente Portugal. Mas essa é só uma parte da história.

A outra parte da história, mais sombria, é a história que será contada sobre as fábricas do consenso eurotópico e sobre a estupidez cipolliana que atravessa a zona euro. A UE está a caminho do abismo autoritário e os seus decisores empurram-se com palmadas venenosas nas costas.



O problema é que também empurram os povos da Europa. Começa a ser difícil compreender a aceitação - por inércia, omissão, compreensão ou devoção - destes eventos. Todos os dias, nas imprensas portuguesa, espanhola e irlandesa, surgem novos comentários em que a lógica implícita é muito simples: os gregos que deixem as suas crianças morrer à fome, porque as dívidas são para pagar.

Nenhum dos membros do comentariado - publicado ou anónimo - é confrontado com esta lógica. O terror da abstracção funciona assim. Os números são os machados da razão; a ilustração das consequências não passa de escapismo ideológico. Não interessa saber se há crianças, em Atenas, Salónica ou Kalamata, que desmaiam de fome em escolas depauperadas. Interessa saber se a taxa de juro implícita da dívida pública grega na óptica de Maastricht é "sustentável".

Não interessa saber se a União Europeia é um projecto político viável e defensável - não pode subsistir sem apoios políticos transversais, ao contrário do que a turba neoliberal julga - porque, durante muito tempo, era viável e defensável afirmar que, estando longe de ser perfeita, a UE procurava um caminho de justiça.

Hoje, nada disso importa e a UE é uma instância concreta daquilo a que se pode chamar zona neoliberal óptima. As crianças gregas morrem de fome? Que morram, porque alguém deve expiar os pecados dos oligarcas e das cabeleireiras. Os velhos enforcam-se numa praça? Que se enforquem, porque alguém tem que ser o cordeiro sacrificial. Esta parece ser a lógica, desde que nunca seja expressa. Podem defender-se posições cujas consequências têm sido estudadas por epidemiologistas e definidas como riscos graves de saúde pública: isso não importa, desde que se honrem as dívidas.

Quem defende este tipo de posição expressa uma preferência concreta pela justiça retributiva própria do código de Hammurabi. Foi este o ponto a que chegámos: se não pagas, sofres na "exacta" medida da tua dívida - e a exactidão é definida pelo temperamento do credor. Daqui, é fácil ir ter a prisões de devedores, sanções corporais e outros eventos pouco frequentáveis.

Esta é uma das vitórias supremas das bocas de Sauron: não podemos perguntar-lhes, aos comentadores que defendem o primado da dívida sobre tudo o resto, se estão dispostos a arcar com a responsabilidade parcial de tudo o que defendem. Provavelmente, recusam-se a admitir a possibilidade. Provavelmente, são pessoas simpáticas. Mas defendem que uma relação financeira é uma relação social com precedência sobre qualquer outra. Fazer esse juízo tem implicações grotescas e verificáveis. E está na altura de começarmos a denunciar isso, se quisermos que a luz ao fundo do túnel não seja um comboio distópico.

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