06 fevereiro 2015

O estilo apocalíptico na direita portuguesa

A direita intelectual portuguesa precisa de fazer terapia. As últimas semanas têm marcado uma mudança no estilo dos seus intelectuais orgânicos. Às terças e quintas, glosa-se a esquerda radical e o perigo de um governo do SYRIZA. Às segundas e sextas, glosa-se a falta de radicalismo - leia-se a vontade de negociar, própria de diálogos bilaterais. Finalmente, às quartas, disserta-se sobre a horrenda possibilidade de pessoas sensatas, cordatas e polidas poderem votar em partidos de extrema-esquerda, esquerda radical ou de -inserir epíteto du jour-.

Os intelectuais orgânicos desta direita nunca foram obrigados a pensar na possibilidades e acções concretas de um governo de esquerda que não encaixe no senso comum imperial. Para estes intelectuais, o PS é um partido de esquerda, Silva Peneda é de centro-esquerda e Pacheco Pereira é um perigoso especialista em contraespionagem política. Ao longos de duas décadas, adoptaram um discurso ufano, perfeitamente alinhado com uma marcha liberal de processos históricos mais ou menos obscuros. Reinava o estilo pragmático. Depois da URSS, a esquerda nunca recuperaria. Sobravam os razoáveis da terceira via; com esses, era possível dialogar. Partilhavam pressupostos básicos, como a presunção da escassez, o individualismo radical, a rejeição do público e do comum como bases de discussão política, a contradição entre liberdade e igualdade, um mundo inerentemente globalizado e a conversão do Estado em instrumento de extracção rentista.



A produção de senso comum é um processo complexo. A criação de hegemonia implica uma correlação de forças especialmente assimétrica. Geralmente, observamos as consequências da hegemonia naqueles que procuraram contestá-la; mas essa hegemonia produziu os seus efeitos na direita intelectual portuguesa, em particular a direita aburguesada, formada em universidades públicas e assombrada pela condição semi-periférica de Portugal. Produziu preguiça intelectual: se, até há alguns anos, a direita intelectual percebia a hegemonia como construção política em evolução, os seus representantes interiorizaram essa hegemonia; a sua naturalização cristalizou a progressão intelectual destes intelectuais orgânicos, hoje incapazes de emular o estilo pragmático dos seus antecessores. Preguiçosos, são incapazes de conceber reflexões coerentes acerca da conjuntura histórica - e isso empobrece o debate político europeu, porque as direitas intelectuais portuguesa, espanhola e grega são fundamentais para a dominação ordoliberal. As reacções emanadas do círculo neoliberal diferem fortemente do seu análogo ordoliberal, e essa poderá ser a conclusão mais dura dos interesses de classe que movem o BCE: dois grupos, aliados circunstanciais e de temperamento, podem ter voltado as costas e, com isso, confirmado a acuidade estratégica da SYRIZA: relevar os interesses contraditórios do bloco no poder e forçar o confronto entre essas contradições.

Hoje, a direita intelectual portuguesa é um estudo de caso sobre algo a que podemos chamar o estilo apocalíptico na política portuguesa. Há cinquenta anos, Richard Hofstadter, reflectindo sobre a ascensão de Barry Goldwater, expressa uma preocupação concreta: a ideia de que as teorias da conspiração começavam a entrar no debate político mainstream, por via de um estilo paranóico, em busca constante da próxima ameaça velada à saúde da República. Primeiro, foi a maçonaria. Depois, vieram os católicos. A seguir, os comunistas.

Hofstadter, como Schlesinger, é um dos ícones do consenso centrista americano. Não deixa de ser interessante, por isso, ler estas palavras e pensar em intelectuais orgânicos portugueses e espanhóis:
The paranoid spokesman sees the fate of conspiracy in apocalyptic terms—he traffics in the birth and death of whole worlds, whole political orders, whole systems of human values. He is always manning the barricades of civilization. He constantly lives at a turning point. Like religious millennialists he expresses the anxiety of those who are living through the last days and he is sometimes disposed to set a date fort the apocalypse.
O estilo pragmático da direita intelectual deu lugar a um estilo apocalíptico. Até há pouco tempo, advertiam "as massas" ou "a populaça" dos perigos de um governo de esquerda, deixando implícita a ideia de que o sol não voltaria a nascer e a ordem política liberal desabaria repentinamente. A direita intelectual portuguesa é, nesse sentido, milenarista: aponta datas, factos e figuras com grande acuidade:
  One of the impressive things about paranoid literature is the contrast between its fantasied conclusions and the almost touching concern with factuality it invariably shows. It produces heroic strivings for evidence to prove that the unbelievable is the only thing that can be believed. Of course, there are highbrow, lowbrow, and middlebrow paranoids, as there are likely to be in any political tendency. But respectable paranoid literature not only starts from certain moral commitments that can indeed be justified but also carefully and all but obsessively accumulates “evidence.” The difference between this “evidence” and that commonly employed by others is that it seems less a means of entering into normal political controversy than a means of warding off the profane intrusion of the secular political world. The paranoid seems to have little expectation of actually convincing a hostile world, but he can accumulate evidence in order to protect his cherished convictions from it.
Confrontados com um governo de esquerda que revela o senso comum como construção política e como ameaça à sua posição de classe num contexto semi-periférico, a direita intelectual apressa-se a acusar. O governo grego é demasiado radical, dizem. Não cumpre as promessas, repetem. Apesar de, como sabermos, a sessão parlamentar só ter aberto ontem ou de sabermos que a recomposição da estrutura da dívida pública orientada para a inclusão de títilos indexados ao crescimento significar uma reestruturação. Isso não interessa. O SYRIZA é uma ameaça civilizacional: é um inimigo da liberdade, é uma ameaça à construção europeia, é uma ameaça extremista que não cumpre as suas promessas. E, além disso, Tsipras tem um filho chamado Ernesto. Só pode ser alguém de pouca confiança.

As últimas linhas do ensaio de Hofstadter exprimem bem a agitação interior da direita intelectual portuguesa:
A distinguished historian has said that one of the most valuable things about history is that it teaches us how things do not happen. It is precisely this kind of awareness that the paranoid fails to develop. He has a special resistance of his own, of course, to developing such awareness, but circumstances often deprive him of exposure to events that might enlighten him—and in any case he resists enlightenment. 
We are all sufferers from history, but the paranoid is a double sufferer, since he is afflicted not only by the real world, with the rest of us, but by his fantasies as well.
A compreensão da dívida e da moeda como expressões concretas de conflitos de classe e manutenção de hegemonia é fundamental. E não deixa de ser divertido ver este conjunto particular de intelectuais orgânicos a correr atrás do próprio rabo. A apologia do obscurantismo tem um risco: às vezes, o obscurantismo transforma-se em horizonte.

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