19 abril 2015

Uma ou duas coisas que Maria de Fátima Bonifácio devia saber



A historiadora Maria de Fátima Bonifácio ficou incomodada pela forma como Manuel Carvalho da Silva, coordenador do Observatório das Crises e Alternativas, “explicou pacientemente” a João Miguel Tavares, às suas tropas e aos seus superiores, como é que o Instituto Nacional de Estatística (INE) calcula a taxa de desemprego do país. E perante esse incómodo, decidiu dedicar-lhe uma prosa dificilmente qualificável no Público desta sexta-feira, que ilustra bem a forma como a irritação política facilmente se transforma em cegueira e irracionalidade.

Chamou a tal prosa “Uma ou duas coisas que Carvalho da Silva devia saber” e nela começa por contestar o facto de Carvalho da Silva defender que se pode considerar como desempregados os indivíduos que o INE classifica como “inactivos desencorajados”. Para o INE um inactivo desencorajado é um “indivíduo com idade mínima de 15 anos que, no período de referência, não tem trabalho remunerado nem qualquer outro, pretende trabalhar, está ou não disponível para trabalhar num trabalho remunerado ou não, mas que não fez diligências no período de referência para encontrar trabalho, com os seguintes motivos para o desencorajamento: considera não ter idade apropriada, considera não ter instrução suficiente, não sabe como procurar, acha que não vale a pena procurar ou acha que não há empregos disponíveis".

Perante este argumento, Fátima Bonifácio diz que Carvalho da Silva considera como “desempregado” alguém que quer simplesmente “passar as tardes a tomar chá com a Kiki Espírito Santo". É um argumento tão caricatural quanto ridículo. A ilustre historiadora esqueceu-se de ler na definição do INE que um “inativo desencorajado” é um indivíduo que “pretende trabalhar” e não que pretende propriamente passar a tarde a beber chá. O ódio político por vezes causa cegueira. Desta vez foi uma cegueira literal. Na excitação de apanhar um deslize que lhe permitisse acusar Carvalho da Silva de defender preguiçosos e laxistas, Fátima Bonifácio esqueceu-se de ler a própria frase que cita no seu texto. Exigir-se-ia melhores competências de leitura para alguém que enche a boca a falar do “ethos académico”.


Para que conste a Bonifácio e a quem mais se enfurece com Carvalho da Silva, para o INE (ver conceitos aqui, pp. 48) só cabe na categoria de desempregado quem se encontre cumulativamente nestas situações: (a) não tenha um trabalho remunerado ou não-remunerado; (b) esteja disponível para um trabalho remunerado ou não-remunerado; (c) tenha procurado um trabalho remunerado ou não-remunerado na semana de referência do inquérito ou nas três anteriores. Isto é, quem na semana de referência do inquérito tenha uma ocupação não-remunerada, mesmo que seja só uma hora nessa semana, e mesmo que seja passar a roupa a um familiar, não é considerada desempregada. Quem esteja disponível para um trabalho remunerado mas não esteja disponível para aceitar um trabalho não-remunerado não é considerada como desempregada. Quem está sem trabalho mas a última vez que foi ao Centro de Emprego foi há um mês e meio, não é considerada desempregada.

Fátima Bonifácio introduz ainda um debate a martelo sobre o que considera a “indefinição do estatuto epistemológico das ciências sociais” e sobre a “extravagância de áreas disciplinares sem estatuto disciplinar” e que têm levado a militância para a universidade, entre as quais os estudos de género ou os queer studies. Não valia a pena tamanha desonestidade intelectual. Qual é o argumento? Cito: “A fatal indefinição do estatuto epistemológico das ciências sociais permitiu e incentivou a transformação da Universidade num local de catequização ideológica”. E que nesse contexto, “um conjunto de extravagâncias sem estatuto disciplinar definido transformaram a Universidade num espaço de militância, subversão e destruição do ethos académico”

Sobre a indefinição do estatuto epistemológico das ciências sociais, Fátima Bonifácio está um pouco mais de 100 anos atrasada no tempo. Mas vale a pena lembrar que o estatuto epistemológico das ciências sociais se estruturou em torno da capacidade destas convocarem e desenvolver análises críticas que, duvidando dos discursos do poder, fossem propensas a explicar a realidade social recusando ideias feitas e argumento de autoridade. Foi isso que Carvalho da Silva e os investigadores do CES fizeram. E a prova de que o fizeram bem foi a irritação que provocaram num conjunto de escribas muito bem identificados politicamente.


Outra coisa bem distinta é o argumento de que a universidade é um local de catequização ideológica. Esse eu subscrevo. O neoliberalismo transformou as universidades a um ritmo impressionante e a catequização acrítica espalhou-se que nem uma mancha de óleo. De tal forma que quando alguém na academia ousa desenvolver exercício crítico em relação ao poder, logo vêm os seus humildes servos pedir cabeças e disparar tiros de pólvora seca contra os académicos subversivos e infames. O problema é que às vezes os tiros vão parar aos próprios pés. 

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