24 maio 2015

Da dignidade das trabalhadoras domésticas



Isidra terá cinquenta, talvez alguns anos mais, marcados no rosto de uma vida que foi só trabalho, desde que se entende por gente, começando pelo auxílio à mãe e aos seus sete irmãos. As lides domésticas fora de casa vieram mais tarde, depois de ter perdido, já na casa dos trinta, o emprego numa fábrica de estofos. Não guarda saudades desse tempo, pois eram horas que nunca mais acabavam, e ao menos agora sabe quando entra e pode ser intransigente na hora da saída. Um minuto a mais e a viagem que repete há duas décadas, entre a Foz do Porto e a estação de São Bento, transforma-se numa ansiedade fria, pois arrisca-se a perder o comboio das 18:35 que a transporta diariamente até Penafiel, no interior destas terras.

Durante a viagem troca impressões com uma colega de labuta, de como hoje deixou o jantar da patroa pronto a aquecer e ainda conseguiu passar na loja para comprar o vestido da sua filha. Com a saída da colega, Isidra continua com uma vontade transbordante de conversar, dessa generosidade fiquei a saber tudo isto e que a viagem dela ainda continuaria, pois o marido aguardava na estação final para a levar até Castelões, onde mora a "um ror de anos". Quando lhe pergunto pelas condições no trabalho, Isidra, com as mãos inquietas, assente que é o que há. Que já trabalhou em casas piores, que esta patroa nunca lhe faltou. Na timidez de lhe perguntar quanto ganha, questionei sobre contrato de trabalho, para logo ver a mão de Isidra mandar-me passear, alargando um sorriso como resposta. Não insisti. As explicações de como a filha está a estudar no Porto foram interrompidas pela minha saída.

A Isidra é uma das quarenta mil trabalhadoras domésticas que o Sindicato dos Trabalhadores de Serviços de Portaria,Vigilância,Limpezas,Domésticas e Actividades Diversas (STAD) estima haver em Portugal. A grande maioria trabalha na informalidade, sem contrato de trabalho e recebendo os parcos salários em espécie. A geografia social destes laços estende-se pelas nossas cidades, na invisibilidade destas conversas e na permanência deste atraso, que é pagar pouco a quem muito faz. 

No Brasil, país marcado pela subserviência a uma elite que consagrou o direito a ser servida quotidianamente por uma massa de trabalhadores onde as mulheres negras são a maioria, a chamada PEC das domésticas, uma emenda constitucional que consagrou a igualdade entre os trabalhadores domésticos e os restantes trabalhadores, explica parte da reação enfastiada da direita brasileira que se manifestou nas ruas de São Paulo no último mês - segundo alguns estudos, os brasileiros que recebem o equivalente a mais de 10 salários mínimos chegam a ter, em média, sete trabalhadores domésticos (motorista, jardineiro, copeira, babá etc) à sua disposição. 

Conta quem conhece que a ComuniDária, associação de "empoderamento" das mulheres migrantes, é o que demais próximo temos em Portugal de um exemplo de organização colectiva neste sector. A ComuniDária apresentou no ano passado um conjunto de alterações à lei do trabalho doméstico, que passam por adoptar os princípios da Convenção 189 da Organização Internacional do Trabalho sobre trabalho doméstico, que defende os direitos fundamentais que devem ser comuns a todos os profissionais que asseguram o trabalho doméstico, como as horas de trabalho razoáveis, o pagamento de salário mínimo, definição de descanso semanal, esclarecimento prévio sobre termos e condições do emprego, respeito à liberdade sindical e direito à negociação coletiva.

O PSD e o CDS chumbaram a ratificação desta Convenção no Parlamento em janeiro. É caso para dizer que com benzina e algumas Isidras organizadas bem nos podíamos livrar desta nódoa.
 


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