13 maio 2015

Voluntariado, um termo cândido da novilíngua

A Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL), organizadora da 85ª Feira do Livro de Lisboa, a ocorrer entre 28 de Maio e 14 de Junho, veio, à semelhança dos anos anteriores, pedir “voluntários” para o evento. Desta forma, dá-se a “oportunidade a 30 apaixonados do livro e da leitura de participarem na realização da maior festa do livro e da leitura”, que é uma tradução recente de “trabalho grátis”.

Editores e livreiros pagam, e não é pouco, para poderem expôr e vender na feira. Os participantes com apenas uma unidade normalizada (vulgo stand) pagam 1800 euros, mais 100 se quiserem ter mais 2 metros extra. Um segundo, terceiro e restantes stands estão ao preço de 2000 euros. Os stands personalizados custam 300 euros por metro linear e devem ter um mínimo de 6 metros. É um escândalo e, claro, é o que permite que a feira aconteça.

Claro que, para além disto, são necessárias pessoas que trabalhem fora dos stands das editoras. Estas, como as outras, garantem que a feira possa existir e, assim, fazer lucrar. Mesmo assim, sinal dos tempos, a organização da Feira do Livro acha que o pagamento não deve ter lugar na história.

Há uma novilíngua nestes tempos de capitalismo desenfreado. Nesta, disfarça-se de bom o que é mau, de preparação para o futuro aquilo que é ausência dele. As palavras têm poder, e o poder económico tem sabido manipulá-las.

Só num cenário destes é que o trabalho gratuito pode ser considerado uma oportunidade. Para mais, claro que tende a repetir-se: os jovens atropelam-se em estágios não remunerados e oferecem as suas forças de trabalho de bandeja porque, lá ao fundo, bem pequena, pode estar uma luz que lhes garanta que há mais qualquer coisa. O problema é que, regra geral, não há nada, uma vez que o aumento do lucro, ou a sua manutenção, estimula o outro lado.

O que a APEL faz agora não é novo: já o fez antes, apesar dos protestos, e, a continuar assim, não parará tão cedo. Para além de o insulto que é propor a alguém que trabalhe de graça, que ofereça a sua força de trabalho, sair absolutamente incólume, o lucro que daí advém não é amortecido com despesas em salários. Claro, fórmula de ouro para quem quer encher os bolsos seja de que forma for, não sentindo a preocupação em fazê-lo com os mínimos, porque, afinal, os tempos não obrigam a cumpri-los.

Só num tempo sem esperança se pode sugar tudo com a promessa ténue da possibilidade. Há quem lucre e encontre neste formato uma forma de continuar a fazê-lo sem grandes preocupações e a um ritmo exponencial. Fazendo-o, arrisca-se a que os jovens em Portugal jamais venham a saber o que é um trabalho remunerado.

Neste sentido, quem se submete a estas condições está ainda a compactuar com esta tentativa, quase ecuménica, de se usurpar trabalho ao garantir que este exista sem ser remunerado. Em 2013, ano em que a organização recebeu mais de cem candidaturas para trabalho gratuito, João Alvim, Presidente da APEL, veio considerar que este “voluntariado” era uma “mais-valia”. Pois, de facto, é de mais-valia que se trata, e que pena que seja assim.

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