14 junho 2015

Come e cala ou o desastre da política cultural

A situação da cultura em Portugal assume dimensões realmente trágicas. Na última década, o investimento público central na cultura desceu 75 %, alimentado num discurso tão cínico quanto ignorante de que quem for suficientemente ousado consegue encontrar fora do Estado os apoios necessários à criação artística. Uma tristeza. Da “democratização cultural” e “liberdade artística” à promoção do “empreendedorismo cultural” e das “industrias criativas” deu-se um salto ideológico de dimensões avassaladoras.
À perda de direitos de acesso da população à cultura e às várias variantes da criação artística, à peregrina desistência de uma política de aposta na criação de públicos e à demissão do estímulo à democratização cultural no conjunto do país, correspondeu também a degradação das condições de trabalho e a precarização dos vários profissionais do setor.  
A descapitalização pública do apoio à cultura que se manifesta antes mesmo da crise financeira faz com que hoje o Orçamento do Estado não reserve mais do que 0,1% do PIB para investimento no setor cultural. Uma vergonha. A cultura não só já não tem um Ministério com capacidade e meios de apoio à criação e à formação de públicos, como está sujeita a uma única orientação política: desinvestimento público, degradação das condições de trabalho dos profissionais, redução do direito de acesso à cultura e degradação das condições de liberdade artística.

Esta semana assistimos a mais um triste episódio desta estratégia deprimente. Conhecidos os resultados dos concursos aos apoios anuais e bienais às artes, verificou-se que das 170 propostas, só foram admitidas a concurso 146, das quais apenas 54 receberão um apoio efetivo. Isto é, apenas um terço das estruturas que precisavam de apoio à criação vão ser de facto apoiadas pelo Estado. Como é previsível, esses cortes têm enormes implicações, por exemplo com processos de despedimento, reduções de horários ou cancelamentos na programação externa, como está a acontecer no conhecido Teatrão, em Coimbra.
Mas o drama não está apenas na forma cega como se descartam a retalho companhias, artistas e criadores/as. Este ano chegou-se à situação ridícula da DGArtes dispensar a fase de audiência dos artistas e criadores/as, prevista na lei, que permite às entidades excluídas pedirem uma revisão da sua candidatura por erros ou irregularidades processuais. A decisão de anular a audiência de interessados não é totalmente inédita mas é a primeira vez que se faz num concurso de apoios anuais e bienais. A estratégia é simples: come e cala!

De facto, é inacreditável como a diretora-geral das artes, Margarida Veiga, invoca o “interesse público” para justificar a inexistência de audiência. Diz a diretora que o processo de audiências iria atrasar a atribuição dos apoios, como se fosse responsabilidade das estruturas artísticas os atrasos nos concursos. E vai ainda mais longe quando refere que as audiências são algo que considera “muito importante” mas que “não serve para reclamar”. Se não serve para reclamar das incongruências, erros e injustiças, para que serve mesmo?

Isabel Craveiro do Teatrão lembra bem que mesmo numa altura tão difícil aquilo que os move é a utopia. E ainda bem. Nestes tempos de ataque sem precedentes aos direitos culturais e sociais só a utopia nos pode motivar a ação de todos os dias. Porque é possível, tem de ser possível, virar tudo isto do avesso. É só preciso força para virar o jogo e passar ao ataque.




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