A situação
da cultura em Portugal assume dimensões realmente trágicas. Na última década, o
investimento público central na cultura desceu 75 %, alimentado num discurso
tão cínico quanto ignorante de que quem for suficientemente ousado consegue
encontrar fora do Estado os apoios necessários à criação artística. Uma
tristeza. Da “democratização cultural” e “liberdade artística” à promoção do
“empreendedorismo cultural” e das “industrias criativas” deu-se um salto
ideológico de dimensões avassaladoras.
À perda de
direitos de acesso da população à cultura e às várias variantes da criação
artística, à peregrina desistência de uma política de aposta na criação de públicos
e à demissão do estímulo à democratização cultural no conjunto do país,
correspondeu também a degradação das condições de trabalho e a precarização dos
vários profissionais do setor.
A
descapitalização pública do apoio à cultura que se manifesta antes mesmo da
crise financeira faz com que hoje o Orçamento do Estado não reserve mais do que
0,1% do PIB para investimento no setor cultural. Uma vergonha. A cultura não só
já não tem um Ministério com capacidade e meios de apoio à criação e à formação
de públicos, como está sujeita a uma única orientação política: desinvestimento
público, degradação das condições de trabalho dos profissionais, redução do
direito de acesso à cultura e degradação das condições de liberdade artística.
Esta semana
assistimos a mais um triste episódio desta estratégia deprimente. Conhecidos os
resultados dos concursos aos apoios anuais e bienais às artes,
verificou-se que das 170 propostas, só foram admitidas a concurso 146, das
quais apenas 54 receberão um apoio efetivo. Isto é, apenas um terço das
estruturas que precisavam de apoio à criação vão ser de facto apoiadas pelo
Estado. Como é previsível, esses cortes têm enormes implicações, por exemplo
com processos de despedimento, reduções de horários ou cancelamentos na
programação externa, como está a acontecer no conhecido Teatrão, em Coimbra.
Mas o drama
não está apenas na forma cega como se descartam a retalho companhias, artistas
e criadores/as. Este ano chegou-se à situação ridícula da DGArtes dispensar a fase
de audiência dos artistas e criadores/as, prevista na lei, que permite às
entidades excluídas pedirem uma revisão da sua candidatura por erros ou
irregularidades processuais. A decisão de anular a audiência de interessados
não é totalmente inédita mas é a primeira vez que se faz num concurso de apoios
anuais e bienais. A estratégia é simples: come e cala!
De facto, é inacreditável como a diretora-geral das
artes, Margarida Veiga, invoca o “interesse público” para justificar a
inexistência de audiência. Diz a diretora que o processo de audiências iria
atrasar a atribuição dos apoios, como se fosse responsabilidade das estruturas
artísticas os atrasos nos concursos. E vai ainda mais longe quando refere que
as audiências são algo que considera “muito importante” mas que “não serve para
reclamar”. Se não serve para reclamar das incongruências, erros e
injustiças, para que serve mesmo?
Isabel Craveiro do Teatrão lembra bem que mesmo numa
altura tão difícil aquilo que os move é a utopia. E ainda bem. Nestes tempos de
ataque sem precedentes aos direitos culturais e sociais só
a utopia nos pode motivar a ação de todos os dias. Porque é possível, tem
de ser possível, virar tudo isto do avesso. É só preciso força para virar
o jogo e passar ao ataque.
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