10 janeiro 2015

Dizer o que quisermos, quando quisermos, como quisermos


Será possível? A tragédia do Charlie Hebdo reavivou o debate sobre os limites à liberdade de expressão, que muitos trataram de empurrar para o pantanoso terreno do "choque de civilizações". Mas primeiro, ao humor, cidadãos. Muito se tem falado sobre o conteúdo humorístico do Charlie Hebdo, do seu exagero, da sua indecorosa via para o despropósito. A defesa da alforria do conteúdo, abstraindo-a ao nível de um direito universal, o direito à liberdade de expressão, é uma necessidade que devemos acarinhar, mas não basta. O que importa discutir sobre os limites do humor, ou a sua ausência, é como essa expressão da inteligência humana estabelece-se na disputa dos espaços e tempos sociais.

Se olharmos a longa tradição do caricaturismo francês, percebemos que esse tipo de humor conquistou um espaço próprio na cena política do país, firmando-se, sobretudo, na esfera jornalística. O mesmo acontecerá, em menor ou maior escala, com outros tipos de humor escrito - no mundo lusófono a crónica será a forma principal. Mas ler é perceber. Quando abrimos o suplemento de humor de um jornal ou assistimos a um filme dos irmãos Coen, sabemos o que nos espera, mesmo sem conhecer o seu conteúdo. Esperamos um tempo de inversão do óbvio, um contrasenso da nossa realidade quotidiana expresso pelo exagero, o espalhafato ou a incoerência fina.

Esse tempo, na maioria das vezes, está limitado ao decorrer da ação da leitura ou visualização, que escolhemos de forma individual ou colectiva. As festas da escola, nas quais se pode imitar de forma caricatural os professores no fim da peça de teatro é um bom exemplo dessa demarcação do tempo - depois do tempo de estudo e de respeito pela hierarquia, o tempo do deboche.

Os realistas de uma realidade mais ampla

Ursula K. Le Guin pelas suas palavras, que precisam de ser lidas e ouvidas (hoje e ontem ou amanhã, sejamos bravos, charlies ou deltas).

I think hard times are coming when we will be wanting the voices of writers who can see alternatives to how we live now and can see through our fear-stricken society and its obsessive technologies to other ways of being, and even imagine some real grounds for hope. We will need writers who can remember freedom. Poets, visionaries—the realists of a larger reality.(...)
Books, you know, they’re not just commodities. The profit motive often is in conflict with the aims of art. We live in capitalism. Its power seems inescapable. So did the divine right of kings. Any human power can be resisted and changed by human beings. Resistance and change often begin in art, and very often in our art—the art of words. (...)
(aqui)
 

09 janeiro 2015

Ricardo Cabral Fernandes: Xenofobia e racismo, duas doenças sociais


           
A tentativa de capitalização dos atentados de Paris por Marine Le Pen não se fez esperar. Apresentou a proposta de um referendo sobre a introdução da pena de morte no "arsenal" jurídico francês, utilizando a linguagem bélica que caracteriza o fascismo. Esta linha de discurso apenas dá azo à xenofobia e racismo e vemos as suas consequências nos recentes ataques a mesquitas em França. É um discurso que extravasa fronteiras e em Portugal, infelizmente, também já se manifestou.

Na década de 30 e 40 do século passado, o regime nacional-socialista de Adolf Hitler utilizou os judeus como bode expiatório para a criação de uma nova união nacional, para a criação de um inimigo interno que se responsabilizasse pelas consequências da crise de 1929,  desresponsabilizando o capitalismo e as suas contradições. Exarcebou-se o nacionalismo, essa doença social. Bem sabemos que esse mesmo capital, que fugiu às responsabilidades, lucrou milhares de milhões de marcos com o Holocausto, tanto de judeus como de ciganos, homossexuais ou outros indivíduos que não estivessem de acordo com a sociedade modelo Hitler, o Reich milenar de pureza da raça. 

Ao criar-se um inimigo externo o povo alemão não reagiu ao inimigo interno que o partido nacional-socialista representava para a democracia e respectiva liberdade de expressão. A ascensão da Frente Nacional representa o mesmo perigo para a República Francesa e seus direitos - mesmo que crescentemente erodidos pela austeridade do senhor François Hollande -, mas também para os trabalhadores franceses, comunidade muçulmana e imigrantes. Constitui uma ameaça para todos e é nessa mesma ameaça que deve se sustentar a união e, por intermédio, a luta contra a xenofobia e o racismo e a defesa da liberdade de expressão.

"Lesbian and gays support the miners"

Além de objetos artísticos, os filmes são ótimos objetos sociais. Usamo-los individual e coletivamente para os mais diversos fins, aprendemos com eles e inscrevemo-los nas nossas vidas. Mas há ainda filmes que nos tocam tanto que gostávamos que toda a humanidade os visse. É um desses filmes que vos recomendo: Pride (2014) de Matthew Warchus. 

O filme conta uma história verídica do Verão de 1984, em que Margaret Tatcher enfrenta greves da União Nacional dos Mineiros contra os despedimentos e as condições laborais e sociais dos trabalhadores. Nesse Verão um grupo de ativistas LGBT começa a recolher dinheiro para ajudar a greve dos mineiros. O sindicado sente-se desconfortável com este apoio mas o grupo não desiste. E mais não conto. Apenas que é um filme de esperança que nos mostra que é por tudo estar ligado, que temos que fazer com que tudo se ligue. 

Imperdível. 


Ricardo Cabral: A privatização do Novo Banco

  • «Este é o ponto mais chocante do caderno de encargos. O Novo Banco é um banco com 72,5 mM€ de activos e passivos (a 4 de Agosto de 2014). Portanto, de acordo com o caderno de encargos, permite-se que empresas financeiras de dimensão muito inferior façam uma oferta de compra de um banco que pode ser 725 vezes maior que a empresa financeira adquirente. Tal tipo de alavancagem e risco, se correr bem, permite à empresa adquirente lucros elevados e crescer rapidamente. Se correr mal, de acordo com as regras europeias, muito provavelmente será necessário o “bail-in”, eufemismo que significa que os depositantes e outros credores seriam chamados a suportar os custos de uma segunda resolução do banco.»

08 janeiro 2015

O sono dos justos

Parece que "ser Charlie" é ser hipócrita, em particular quando não se denunciam ataques imperialistas, quando não se expõem as contradições do capitalismo apocalíptico e quando não alinhamos pelo mesmo diapasão em todas as questões acerca das quais só pode haver uma opinião e um grau de coerência ditado por quem nunca, em tempo algum, a perde. Quem caracteriza o Islão como fascismo verde e a NATO como keynesianismo militarizado está nesse campo. Sendo assim, prefiro a consistência Oscar Wilde.

De resto, ficam aqui dois exemplos, com a leitura que lhes associo e é evidente pela escolha.

Sim, é verdade que este tipo de atenção devia ser votado a assuntos que algumas pessoas consideram mais importantes. Mas não é plausível que esta atenção seja hipócrita ou constitua uma instância de lágrimas de crocodilo. Quem defende isto sofre de misantropia grave.

É também evidente que "ser Charlie" é uma distracção criada pelas redes sociais e os puristas poderão sempre optar pela sua recusa. É uma escolha inteiramente legítima. Mas contestar a escolha de quem considera o assassinato de doze pessoas um acto bárbaro, apesar de não ter o mesmo impulso condenatório no que resta do ano, ao apoiar o austeritarismo, ao reprovar a luta dos trabalhadores, ao negar a existência de esquerda e direita, ao recusar a discussão sobre o mérito da permanência no euro, ao aceitar a primazia da dívida sobre direitos humanos, é pouco hábil. Remete para uma impossibilidade concreta: a de manter a mesma atenção equânime sobre todos os assuntos que ocupam a esfera mediática. As capas de hoje não resgatam a imprensa das omissões, muitas vezes politicamente motivadas, de que é culpada ao longo de muitos ciclos mediáticos. Mas não há aqui equivalência: as omissões anteriores não mancham as capas de hoje. Ou seria preferível que os acontecimentos de ontem fossem silenciados?

07 janeiro 2015

Charlie Hebdo: nada muda e tudo se transforma

As doze pessoas mortas hoje, em Paris, são aquilo que importa. Confesso; não sou grande fã da estética Charlie Hebdo, mas respeito a sua história e o seu papel de combate à censura. Porque, de resto, pouco mudará: a islamofobia, na Europa, continuará mascarada, por um lado, pelo orientalismo higiénico e, por outro, pelo racismo desenfreado dos Bernard Lewis, Orianas Fallacis e companhia, que não hesitam em ignorar quase tudo sobre o Islão ou em promover uma etnicização reducionista.

A publicação do novo romance de Michel Houellebecq, que não parece ser brilhante, também pode ser um sinal. Tal como os desenvolvimentos na Alemanha, onde a catedral de Colónia e a Porta de Brandeburgo desligaram as suas luzes para mostrar que o Pegida, um movimento islamofóbico que não pode ser exclusivamente associado a franjas neonazis, não é aceite pela esfera pública alemã. Pena que a indignação não se tenha manifestado desta forma aquando dos Donermorder, da utilização destes e de outros cartazes pelo NDP nas eleições de Berlim, em 2011. O Bild é uma publicação particularmente nojenta e hipócrita: o maior tablóide europeu faz o seu caminho à custa de ódio e não podemos esquecê-lo.

Entretanto, Tariq Ramadan já se pronunciou, tal como o Conselho Francês do Culto Muçulmano. Percebo a atitude, embora seja um sintoma: as comunidades muçulmanas europeias e residentes na Europa não têm a responsabilidade de manifestar o seu compromisso com a democracia porque uma equipa de pessoas com treino e armas de calibre militar, depois de assassinarem doze pessoas, fazem sinais e entoam palavras associáveis ao Islão.

Nada mudará muito. Haverá uma sensibilidade aumentada à incerteza, por parte de quem não encontra inimigos em todas as portas. Aqueles que odeiam continuarão a odiar. Por cá, teremos as cabeças ignaras do costume a falar de coisas que não percebem.

Sergio Monteiro renegociou PPP que ajudou a criar em 2009


Já aqui demos conta do caso de Teresa Empis Falcão, assessora de Sérgio Monteiro, o Secretário de Estado dos Transportes, que durante o ano de 2014 acumulou a função de advogada na sociedade Vieira de Almeida com a assessoria ao Ministério da Economia. Mas neste caso, vale a pena ver o quão profunda a toca do coelho pode ser.

Em 2012, Sérgio Monteiro e Teresa Falcão conduziram a renegociação de várias PPP rodoviárias. A necessidade de demarcação política perante os negócios ruinosos embalaram o processo. O Secretário de Estado multiplicou-se em pedidos de clemência às entidades concessionárias, acenando com a poupança de 677 milhões em 2013 e 2014, e o tema das PPP transformou-se em arma de arremesso contra um PS apático e um Paulo Campos caído em desgraça. No entanto, há uma PPP em particular que, pelo seus contornos e participantes, merece a nossa atenção.

Sérgio Monteiro assinou pelo Caixa BI, Teresa Falcão representou a Vieira de Almeida

Uma das PPP renegociadas por Sérgio Monteiro e Teresa Falcão afetou diretamento a AELO (Auto-Estradas do Litoral Oeste), a concessionária responsável pela construção e gestão da malha rodoviária que liga Fátima, Ourém, Leiria, Nazaré e outras cidades da região (A19, IC36). O Secretário de Estado afirma ter alcançado uma poupança de 24 milhões no período dos 30 anos de concessão previstos inicialmente.

05 janeiro 2015

[VIRÚS nº6] PODEMOS: novos caminhos para a mudança




*Editorial por Fernando Rosas

«O Estado Espanhol vive um processo histórico de crise política, económica e social, que merece a atenção de toda a esquerda socialista europeia, e não só. À ameaça independentista da Catalunha (e do seu imprevisível efeito de dominó em outras nacionalidades), juntam-se os efeitos da austeridade e a profunda crise de legitimidade que atinge o sistema político bipolar/rotativo assento no PP e no PSOE.

Dos movimentos sociais e de cidadãos transformados em movimento político – Podemos -, surge uma alternativa de esquerda que parece ter possibilidades eleitorais de ser governo ou de, decisivamente, o condicionar. Nas esferas do poder corrupto que rotativamente tem governado a Espanha pós-franquista, instala-se a perplexidade e o pânico. Adivinha-se um duro combate. Por tudo isto, fazemos o Dossiê deste número da VÍRUS com um trabalho de entrevistas e reportagem de Jorge Costa sobre o Podemos, prescindindo de uma específica entrevista autónoma, como costumamos fazer.

04 janeiro 2015

Assessoria jurídica abre portas nos ministérios



Bem podíamos chamá-lo "Senhor Privatização". Pelas mãos de Sérgio Monteiro passaram as privatizações mais relevantes dos últimos dois anos. Da entrega da ANA aos franceses da Vinci, passando pelo retalho dos CTT em favor do Goldman Sachs e Deutsche Bank, até à anunciada alienação da TAP e concessão dos transportes urbanos de Lisboa e Porto, em todos estes processos encontramos o empenhado Secretário de Estado das Infraestruturas, Transportes e Comunicações.

No apoio a essa empreitada, este antigo responsável pela área das PPP no banco de investimento da CGD, o Caixa BI, montou o seu gabinete no governo em estreita colaboração com um escritório de advogados. Três dos assessores diretos de Silva Monteiro vieram da Vieira de Almeida & Associados (VdA). O caso que apreciamos neste artigo é um bom exemplo do triângulo da promiscuidade entre governo, grupos privados e grandes sociedades de advogados.


Contrato de 31 mil euros realizado um dia depois da exoneração.

Uma dessas assessoras de Sérgio Monteiro foi Teresa Empis Falcão, contratada em exclusividade até 22 de janeiro de 2014, sendo exonerada com louvores do secretário de Estado, que salientou o "papel determinante que teve para o sucesso do Programa de Privatizações constante do Memorando de Entendimento acordado entre o Estado Português, o FMI, o BCE e a CE.". Todavia, a ausência de Empis Falcão do Ministério do Ministério da Economia durou apenas um dia. A 23 de janeiro, foi assinado um contrato de prestação de serviços por Carlos Nunes Lopes, chefe de gabinete de Sérgio Monteiro, garantindo o pagamento de 31 mil euros a Empis Falcão por serviços jurídicos.