26 junho 2015

Queimar o gato porque é tradição


[foto de Leo Grübler, FLickr]

Apelar à tradição como argumento forte, tantas vezes único, tem menos consistência do que a vetustez da etiqueta faz crer.
História não são tradições fabricadas para justificar o eticamente condenável.
A História tem até emergido da desconstrução de mitos e preconceitos, tem registado como pode o novo proceder do velho ou como o velho se esconde à espreita em tanta novidade.

A História compõe-se do novo, compõe-se do velho.

Não vejo no respeito pelas tradições - o respeitinho, respeitinho! retrógrado - nenhuma essência da portugalidade. Encontro desejo de veneração por um passado imaginado em muitas culturas contemporâneas. Poderá ser refúgio de um presente que escapa entre dedos, poderá ser vestígio de passado autoritário, entranhado tanto mais quanto menos estranhado. Era reconfortante pensar que é tão português. Seríamos únicos num acidente histórico. Só que não somos.
Nesta linha, a tradição é imaginada e construída contra a mudança social, é avançada como o pau que avisa e antecipa o sentir da paulada. Respeitinho, portanto.
O apelo à tradição tem História mal contada, inertemente recontada e tem de História muito pouco realmente. Crítica não rima com tradição. Reflexão rima, mas do outro lado do espelho faz caretas à imóvel caricatura da tradição.

Custa, sim custa. Viver rodeada de tanta tradição, tanto tabu que não se toca, tanta ladaínha que adormece e um presente de pés-de-barro que, visto com os óculos da tradição, é feito para não andar.
Bater na mulher, (foi?) tradição. Tourear, tradição. Elogiar as virtudes da pobreza e angariar pobres para a carteira de clientes da caridade, tradição. Constrangir na universidade, academicamente trajando saberes e diplomas que vão nus, tradição. Ai a corrupção e o dar uns jeitinhos, ai o trabalho mal pago e as gorjetas! Tradição.
Não é um passado, é um presente com podridão.

A tradição não é História nem popular: é popularucha, distorção; é caricatura, manipulação; é populista, invenção.

Em Portugal, recente ainda, a criminalização dos maus tratos a animais de companhia não é nenhuma tradição.
Fazer festa do espetáculo de um gato a arder, sem empatia ou comiseração é, alegadamente, tradição. Tradição, como tantas, feita de silêncios cúmplices: ninguém fez, ninguém viu, sem intervenção. Sempre se fez, qual é o problema, querem lá ver a modernice, repete a tradição.
Uma tradição com tanto de ignorância acomodada como de brutalidade indiferente. Precisa chamar-se tradição, como se defenderia uma aberração?
É preciso abrir as portas, arejar. Fechar o alçapão, iluminar. Denunciar publicamente, debater, conversar, protestar, tudo menos ignorar.

Infletir, infletir e sair da tradição. História precisa-se. É preciso fazer novas histórias.
O respeito pela dignidade, a revolta contra o sofrimento, a humanidade com que se deve olhar os animais são ferramentas no enterro da tradição.
Uma queixa foi registada. Alguém viu e publicamente denunciou, alguém reportou, alguém fez petição.
Não é o futuro que está à espera. É este presente, atolado, que não se quer tolerar mais.
A tradição foi como as cerejas, foi de começar. O Tempo das cerejas, vai de mudar. Estaremos já a andar?