15 janeiro 2014

Mexe-se onde não se deve e não se mexe onde se devia mexer

A educação e em particular a escola pública enquanto configuração institucional hegemónica nas sociedades ocidentais contemporâneas são alvo de uma enorme e permanente atenção mediática e de um ininterrupto debate público em todas as esferas da sociedade. Mas demasiadas vezes, a agenda ideológica de cada momento político esconde do debate público uma leitura mais longa, ampla e contextualizada das questões da educação. Talvez por isso, as mudanças políticas que agora se propõe no Orçamento de Estado e sobretudo no Guião da Reforma do Estado (e outras que se foram desenhando nos últimos anos) sejam omissas sobre as grandes questões de fundo sobre a evolução do sistema educativo português.

Deixar o debate pela rama produz dois efeitos politicamente úteis para quem executa a agenda política: por um lado, oculta a evolução que a sociedade portuguesa conseguiu conquistar nos domínios da qualificação nos últimos anos; e, por outro lado, reproduz, acentua e naturaliza os piores indicadores que persistem na relação entre escola e as desigualdades. Vejamos curtos exemplos dos dois efeitos.



Gráfico 1: Indicadores de Educação entre 2001 e 2011
Fonte: INE, Censos 2011
 Quando se mexe no sistema de ensino e na sua organização é preciso ter estes dados gerais na cabeça. A taxa de analfabetismo, a população com 15 ou mais anos sem qualquer nível de escolaridade completo ou a proporção de jovens que apenas completou o 3º ciclo tem vindo a diminuir muito consideravelmente na última década, ao passado que indicadores como a proporção de crianças no ensino pré-escolar, a proporção de jovens que completaram o Ensino Básico, o Ensino Secundário e o Ensino Superior em todos os domínios e escalões etários aumentaram. Temos hoje uma sociedade mais qualificada e com indicadores mais próximos da média europeia. Temos uma sociedade que soube construir de forma acelerada uma escola pública alicerçada numa conceção ampla de democracia social. E foram pessoas concretas que o conquistaram, durante anos e com muito esforço.

Quem tem consciência desta evolução, não pode aceitar que a precarização e o despedimento dos professores, o encerramento e concentração de escolas, o corte no financiamento, a dualização de vias ou o chamado cheque ensino sejam aplicados na leviandade da agenda política e ideológica do momento. Mas a irracionalidade do mediatismo tem um segundo efeito: oculta, reproduz e agrava uma escola cuja ligação às desigualdades sociais é ainda evidente.

Gráfico 2: Impacto da condição sócioeconómica na performence eduativa nos países da OCDE
Fonte: OCDE, Equity and quality in education: supporting disavantage students and school

Gráfico 3: Risco de insucesso escolar por status socioeconómico, qualificação dos pais, origem nacional e género
Fonte: OCDE, Education at a Glance, 2012

Os dois gráficos a cima são meramente ilustrativos disso mesmo. Como se lê no gráfico 2, Portugal tem um sistema educativo que o situa no conjunto dos Estados em que o impacto da classe socioeconómica no desempenho escolar se encontra acima da média europeia e, apesar das evoluções em muitos indicadores, como se percebe no quadro 3, tem um risco elevado de insucesso escolar para os alunos de classes de status socioeconómico mais desfavorecidas. A evolução acelerada dos indicadores de educação nos últimos quase quarenta anos de democracia e a persistência da reprodução das desigualdades no sistema de ensino é acentuada em praticamente todos os estudos das ciências da educação e da sociologia sobre este assunto. Para os alunos, para os professores e para o país é um desastre que a agenda ideológica do momento permita pôr em causa décadas de evolução e conquistas e, sobretudo, que neutralize o debate que era preciso ser feito: como se melhora e democratiza a escola pública.

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