Demasiadas vezes lamentamos a forma como destruímos a
nossa memória coletiva. Passamos nas ruas e nas cidades e não reparamos na forma
como os objetos e os lugares transportam consigo a história e a memória das
nossas sociedades. Parte do património histórico, cultural e social vai sendo
esquecido ou destruído, restando-lhe um lugar de sobrevivência confortável nos registos
historiográficos que se vão empilhando em bibliotecas.
Por estes tempos apercebi-me de como muitos dos
símbolos que marcaram de forma inquestionável os anos 80 e as transformações socioculturais
de Portugal nessa época têm sido votadas a uma relativa invisibilidade ou, em alguns casos, a uma
destruição que se traduzirá no esquecimento. Foi essa realidade
que encontrei ao começar a estudar o Rock Rendez-Vous, uma das mais importantes
salas de espetáculos lisboetas. Um espaço onde nasceu e explodiu o novo rock português,
mas também onde se alastrou uma nova cultura urbana e juvenil que transformaram de forma acelerada e particularmente intensa as sociabilidades dessa década.
O Rock Rendez-Vous foi uma das mais conhecida sala de
espetáculos de Lisboa dedicada ao rock português. Criado em Dezembro de 1980 e
encerrado em Julho de 1990, este foi um espaço situado na Rua da Beneficência
ao Rego e que substituiu o antigo Cinema Universal. Durante todo o século XX
até a abertura da sala em 18 de Dezembro de 1980, o espaço foi sempre uma sala
de cinema. Em 1928 foi inaugurado como Cine Bélgica, em 1968 mudou de
designação para a cinema universitário e só em 1973 se transformou no famoso
Cinema Universal, que depois de 1974 foi umas das principais salas de exibição
filmes revolucionários e de cinema fora dos circuitos comerciais.
Cartaz da projeção de "O ano 01" em 1977 |
O
Rock Rendez-Vous foi inaugurado com um concerto de Rui Veloso cantando a sua
“Rapariguinha do Shopping”, single do seu primeiro disco, “Ar de Rock”, de 1980.
Rui Veloso enchia a sala com o blues e um twist que pouco se conhecia na música
portuguesa daquela época. Por aquela sala passaram bandas como os Xutos e Pontapés,
os Heróis do Mar, os Mão Morta, os Táxi, os Rádio Macau, os GNR, os Peste e Sida, os UHF, os
Radar Khadafi, os Graal Blues Band de Paulo Gonzo, os Kús de Judas, os Jafumega, os Aqui
Del´Rock e tantas outras. No “Concurso de Música Moderna” inaugurado em 1984
candidatam-se todos os anos dezenas de novas bandas e Lisboa corria
à sala para ouvir as novidades que o rock trazia e que a liberdade deixava
aparecer.
O
Rock Rendez-Vous e muitas outras salas foram os espaços de uma juventude que
viu nascer a primeira década em liberdade e que decidiu experimentar tudo. Por
lá experimentou um rock cosmopolita, rejuvenescido e enfurecido. Por lá passou
uma geração nova construindo aquele espaço como um dos mais importantes
símbolos da nossa história recente.
Tudo
mudou ao passar hoje pela mesma rua. No espaço onde era o Rock Rendez-Vous hoje
pode comer-se um bolo, uma tosta ou beber um café. O espaço foi completamente destruído e hoje
é o “Galão 2”. Por cima são habitações. As casas e o comércio acabaram com a
memória física das importantes salas de cinemas lisboetas do século XX e da mítica sala de espetáculos.
Quem
hoje passa naquela rua, não se apercebe de como Portugal evolui naquelas
esquinas. A memória perde-se, os espaços destroem-se mas ainda há uma memória que
ainda resiste. Não é a minha, que já nasci depois do fecho daquela sala. Mas é
a memória daquelas e daqueles que viveram intensamente aquele espaço e aquela
década.
Conta o esquecimento e a invisibilidade, é urgente uma insurreição
cultural dessa memória. É essa a única possibilidade de continuarmos a saber
como aqui chegámos e, necessariamente, para onde caminhamos. Longa vida ao Rock
Rendez-Vous.
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