Só posso ter respeito pelo
percurso académico de Manuel Villaverde Cabral. É precisamente por isso que não
posso fazer qualquer reverência às prosas políticas e ideológicas a que se tem
dedicado nos últimos anos e sobretudo nos últimos meses no Observador. Esta semana
o seu raciocínio foi o cúmulo: consegue desenvolver um argumento inteiramente
correto, com pressupostos politicamente irracionais.
O argumento do sociólogo é
simples mas muito coerente: o futuro da Europa está verdadeiramente em aberto
depois das eleições gregas e do significado que elas tenham nas restantes
eleições que vão acontecer em 2015. O argumento está correto mas a explicação
errada. É que para Villaverde Cabral, a roleta grega não abre esperança numa possibilidade
de reversão das políticas de austeridade mas sim num temível fim da União
Europeia e da moeda única. A explicação é simples: em 2015 estamos na eminência
ou da obediência cega à austeridade, ou da morte de qualquer perspetiva
política europeísta. A escolha a que o autor nos interpela resume-se de forma simples:
ou aceitamos morrer da austeridade ou aceitamos a morte da europa. Felizmente,
há mais vida além do simplismo.
Villaverde Cabral sabe tão
bem como qualquer cientista social que quem quer fazer um debate na posição do
cartomante que adivinha o futuro dos processos sociais só pode utilizar a futurologia
como uma forma irracional de esgrimir argumentos. Neste caso, a forma mais
irracional de fazer este debate é essa mesma: não discutir os conteúdos
concretos da política em jogo e mistificar o debate com as supostas, previsíveis
e inquestionáveis consequências das livres escolhas dos povos.
Villaverde Cabral começa
por fazer um conjunto de perguntas para orientar a sua explicação. Bem sei que fazer
perguntas ajuda a desenvolver bons argumentos. Mas só a desonestidade
intelectual nos poderia fazer crer que a forma como as perguntas são
formuladas, nada dizem sobre as pré-disposições políticas e ideológicas de quem
as formula. Se não vejamos:
“Será
que o Syriza sempre vai ganhar as eleições, surgindo como o primeiro partido com aparente credibilidade eleitoral a
desafiar abertamente a cura de «austeridade» imposta pela dívida externa?”
“Será que, ganhando, o Syriza conseguirá fazer
governo? E se o conseguir, irá finalmente desafiar a receita da UE? E se o
fizer, ganhará a sua aposta ou será confrontada com a iminência da saída do
euro? Ou acabará a Grécia por encontrar uma solução de continuidade
governamental que lhe permita manter um módico indispensável de contenção da
despesa?”
Devolvo as perguntas:
O que leva Villaverde
Cabral a considerar que a cura da austeridade foi uma imposição da dívida
externa?
Não poderá a cura da
austeridade ter sido uma imposição político-ideológica dos governos europeus?
Porque é que é não se
explicam as razões do aumento da dívida externa e da dívida pública no geral?
Não poderá ter aumentado a
dívida externa e as dívidas públicas no quadro do resgate dos Estados aos
sistemas financeiros? Ou o autor assume que a dívida aumentou por culpa dos
Estados quem têm serviços públicos e das muitas famílias que recorreram a esse
luxo de comprar uma casa para viverem e irem uma semana de férias à praia?
Não poderá a austeridade
ser uma estratégia política de acumulação de riqueza e de corte no salário
direto e indireto a pretexto do pagamento da dívida?
O que leva Villaverde
Cabral a considerar que a austeridade é uma “cura” e não uma “doença”?
O que leva Villaverde
Cabral a achar que um governo do Syriza que ganhe eleições só tem uma “aparente
credibilidade eleitoral”?
Porque é que Villaverde
Cabral considera que se os gregos votarem livremente pelo fim da austeridade
têm como possível consequência a saída do euro e se votarem pelos partidos da
austeridade essa saída do euro não é igualmente plausível?
Porque é que o fim da
austeridade imposta pela UE é colocado como incompatível com a contenção da
despesa?
Achará o autor que só se
pode cortar despesa com o Estado-social e não com os serviços da dívida, as
parcerias público-privadas, os contratos e rendas ruinosas para o Estado, os
milionários escritórios de advogados ou no combate à corrupção, ao clientelismo
e à falta de transparência?
Mas as mistificações não
se ficam por aqui, dizendo o autor que a reestruturação da dívida “já aconteceu
na Grécia” e “sem resolver os problemas de fundo da dívida”. É um argumento
simplista. Primeiro porque esconde que as políticas da austeridade também não
resolveram o problema da dívida em nenhum país da europa e do mundo. E segundo
porque o que aconteceu na Grécia não foi uma reestruturação da dívida, mas um
abate de dívida com a imposição de um programa ultra-austeritário de destruição
de serviços públicos, de mais cortes e de promoção do desemprego. Há mesmo
várias formas políticas e económicas de fazer reestruturações. Não vale a pena
desqualificar o debate.
No fim do texto,
Villaverde Cabral dá a estocada final, bem aproveita pelo Observador para “destaque”
do texto:
“E se o Syriza não ganhar
ou não conseguir fazer governo? Será a deflação política do Podemos, para não
falar dos minis-Podemos portugueses e, quem sabe, se o fim das próprias
excentricidades do PS com a sua sistemática denegação de que há um seríssimo
problema da despesa pública a resolver em Portugal rapidamente, passando por
difícil que seja pelas reformas, a função pública e as empresas estatais.”
O excerto é bem revelador:
para Villaverde Cabral é bom que o povo grego não escolha o Syriza porque isso
acaba com quaisquer outras esperanças no resto da Europa. Como sociólogo que é,
fica-lhe mal dizer isto. Cabral sabe tão bem como nós que as derrotas dos
movimentos sociais, populares e políticos não se traduzem sempre na morte das suas
redes, esperanças e formas de organização. Às vezes a derrota de um momento
político faz desaparecer um campo político. Outras vezes dá força a esse campo
político. E outras ainda, faz com que ele se reinvente, procurando respostas
novas para problemas novos.
A realidade social e
política é mais complexa que as mistificações de Manuel Villaverde Cabral. O
seu percurso na investigação desses temas exigiria análises mais depuradas de
tanta irracionalidade. Como o próprio diz: “há uma questão inegável: o elemento
político e ideológico faz parte quase natural da vocação para as ciências
sociais.” Eu acrescentaria
apenas que também faz parte natural da vocação dos cientistas sociais.
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